quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A cabaça e o pote

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Meizinha, suvaco, adijutoro, rapariga, disculhambação, cabra besta, gaiudo, gabarolice, catá coquinho, vacuá e tantas outras falas, são não apenas o linguajar da roça vivido pelo matuto. Há um grande universo envolvendo tudo isso.
Traduzir a coragem e a persistência – às vezes, até por ter consciência da impossível solução para apenas um problema – do matuto, aquele que realmente produz riqueza pela força do trabalho na agricultura e afins, é algo muito difícil.
Madrugar – acordar e levantar, quando o dia começa a clarear – é não apenas uma necessidade. É um hábito. Ao escutar o galo cantar, a vaca mugir ou o berro dos cabritos, é rotina. É o despertador, na roça – para os abastados, na “fazenda”.
Era assim, em Queimadas – povoado de Pacajus, no Ceará – quando o sol avermelhava os céus mostrando um colorido encorajador para Raimunda Buretama e os netos. Muitos netos.
- Levante meu fii, se arrexe e vamos buscar água prumode fazê o dicumê!
Caminhar 12 Kms (6 de ida e 6 de volta) pelas veredas para apanhar uma cabaça d´água, não era coisa que uma criança entrando na adolescência gostasse de fazer. Mas, era preciso fazer. Tinha que acontecer. Eram duas caminhadas, o que acabava significando 24 Kms por dia – “apenas para buscar água” – para uma casa de 9 moradores. O banho ficava para a segunda viagem ou, no fim da tarde na garupa do jumento do avô.
Cinco, seis e até sete anos fazendo isso. Chovesse ou fizesse sol. E aqui fazemos uma parada para uma indagação – será que a água tem importância para uma família dessas? Será que a transposição do São Francisco vai significar alguma coisa para várias famílias que vivem esse dilema?
Em casa, o pote sobre a trempe. Coador de morim amarrado na boca para evitar a passagem de gravetos ou de martelos na água de beber. Ferver a água, nunca. A água só fervia quando era colocada no fogo na lata de fazer café, já com um pedaço de rapadura.
Nos raros invernos, uma terrina de cimento servia como cisterna da água da chuva aparada na canaleta feita do sabiá (mimosa caesalpiniaefolia), uma madeira de grande aproveitamento no interior, serve para aplacar a sede dos caprinos, das galinhas e outros animais domésticos criados para o abate e consumo da família.
Nos anos 50, 60, e meados de 70, nenhuma residência do interior do estado tinha água tratada e canalizada – e isso significava dizer, que esgoto ninguém conhecia naquelas paragens.
Hoje, acreditamos, tudo é diferente. Já não se caminha mais 24 Kms e a cabaça e o pote foram praticamente abolidos, embora as casas permaneçam quase sempre as mesmas: paredes de estuque, chão batido, fogão a lenha e portas fechadas com tramelas, apesar da crescente e preocupante violência urbana.
E dá uma saudade danada da caminhada diária de 24 Kms. Dá uma saudade danada do bom, da ingenuidade, da coisa boa e, principalmente, da união e da unidade familiar – coisa que a tecnologia trouxe junto com a evolução.
Felizmente, ainda é comum, nos povoados do interior, a “roça familiar” – batata doce, macaxeira, feijão, maxixe, quiabo, tomate, coentro, cebolinha verde e, nas Queimadas os primos e filhos dos primos nunca deixaram de preservar as moitas de mofumbo, arbusto preparado para a reprodução dos capotes – galinha d´angola.
José de Oliveira Ramos, in www.bestafubana.com.br

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