quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Dois milagres

A viagem de Maturi do Alto até Vargem Nova do Ingá, naquela manhã fria de julho, já estava me enfastiando. Motivos tinha por demais para tal: tinha acordado cedo, a enxaqueca me incomodava, era uma viagem a trabalho e aquela pequena e recôndita cidade não era servida por empresa de ônibus. O carro de linha, uma C10 Chevrolet, deixava em total desconforto os passageiros nos bancos de madeira na carroceria amontoada de bagagens, víveres, compras, utensílios, animais até.
Amuado, a falação corriqueira entre os outros me irritava ainda mais. O carro não andava, sofreado pelo excesso de peso. Mas isso não era motivo de preocupação para o chofer Totonho de Zacarias que, a cada 500 metros, parava à beira da estrada aos acenos dos futuros passageiros, ante os maldizeres dos que já estavam, à despeito de terem sido, noutras vezes, motivos das ditas maledicências. Totonho, resoluto, pedia: “Pessoal, lá na frente tá vago!”. E lá ia a turba de trás apertar ainda mais os da frente. E continuava o petitório: “Dona Zefinha, esse pote está tomando o canto de um cristão. Leve ele no colo, por bondade!”. E mais: “Seu Chiquinho, esse bode que é melhor pros três e pra todos, que vá amarrado nos tamboretes, no bagageiro”.
Depois essa reorganização provisória, lá se vinha na próxima parada, após os renovados apelos dos fatigados passageiros, outra arrumação nunca definitiva.
O cheiro agradável de mato verde que adentrava constantemente no carro; a paisagem com as suas diferentes verduras; os açudes cheios e a sangrar; O Pau-D'arco roxo e o amarelo com suas florescências em apogeu; aqui, o cantar de um concriz; ali, a algazarra de um bando de periquitos; nada disso me satisfazia, não adentrava o meu espírito ora inquieto, enquanto o carro descia a serra.
E na penúltima parada, subiu uma senhora e o filho, um pirralho de cerca de cinco anos.
O garoto, muito vívido, fazia observações e interrogações constantes à sua mãe: “Olhe, olhe, mãe, aquela casa é azul. Não é azul?”; “Ei, mãe, viu o bezerro mamando, não tava mamando, mãe?”; “Mãe, mãe, que árvore é aquela que é verde diferente daquela outra verde, aquilo é verde, não é mãe?”. E a mãe, paciente e maternalmente, respondia aos questionamentos do filho, como a educá-lo. 
O guri às vezes me incluía nas suas desarrazoadas inquirições: “Né não, seu moço?”; “Viu também, moço?”. E isso me irritava até os ossos, mais que o excesso de passageiros, a matalotagem e as tralhas.
A mãe e o filho foram os primeiros a descerem já na entrada de Vargem Nova do Ingá, e o carro afastou-nos das novas indagações do guri. Para destilar todo o veneno acumulado na viagem, comentei com o passageiro ao lado da impertinência do menino, tratando-o como maluco. O senhor, com voz austera, me indagou: “O senhor é daqui da região?”. Minha resposta foi um seco “não”. Ele continuou: “Então o senhor não conhece o caso. Juninho, aquele menino, quando tinha dois anos, levou uma queda e cegou de vez. Os pais dele são agricultores, bateram todos os doutor dessa região, até foram na capital, e nada de voltar a vista da criança. Mas seu moço, de um mês pra cá ele está recuperando a visão. Milagre, senhor. Que outra coisa mais há de ser?”
E eu, homem letrado, senti um peso no coração, maior que minha vergonha. Compreendi, naquela explicação simples e direta, o quanto fui preconceituoso, e não medi as consequências indevidas do meu ato, baseando-me unicamente nas aparências e no momentâneo, ciente em uma racionalidade tacanha da inferioridade racial, social.
Isso ocorreu a cerca de trinta anos e deixou uma marca indelével em minha alma. Depois desse episódio, tornei-me mais cuidadoso: leio nos outros o diferente, o diverso, assimilando, entre as divergências, o quanto temos em semelhança.
Se essa viagem ocorresse hoje, estaria em sintonia com todos: Totonho de Zacarias, Dona Zefinha, Seu Chiquinho, o Senhor do lado, Juninho e sua Mãe, e eu poderia desfrutar, de forma diversa, a dureza do banco na carroceria, o amontoado das bagagens, as tralhas, a falação embaralhada dos passageiros, bem como poderia distinguir os diversos cheiros de mato verde com suas diferentes verduras; vislumbrar, na paisagem, os açudes cheios e a sangrar; distinguir o Pau-D'arco roxo e o amarelo com suas florescências em apogeu; assobiar, em uníssono, com o cantar de um concriz; fotografar a algazarra de um bando de periquitos; satisfeito, tudo e todos adentrando o meu espírito quieto, enquanto o carro descesse a serra.
Elilson José Batista, in Alumbramentos – Inéditos e Afins

Nenhum comentário:

Postar um comentário