quinta-feira, 30 de maio de 2013

Público

Ser intelectual é, entre outras coisas, observar com estranheza seu nome e sua imagem se alienarem do que você pensa.
Ser um intelectual público (se é que há outro) é:

1. Viver permanentemente com o compromisso de procurar a verdade, de dizê-la — até onde se conseguiu compreendê-la —, de assumir as dificuldades dessa busca, de admitir quando não se acredita estar enxergando bem e de reconhecer os erros de interpretação e juízo quando interlocutores os apontam.
2. Aceitar qualquer pessoa como interlocutor no espaço público. Mas se reservar o direito de responder somente às críticas ou observações que se situem dentro da vontade honesta de compreender a realidade, recusando as tentativas de produção de polêmicas fundadas em agressões imaginárias ou posicionamentos a priori inamovíveis. Foucault: “O polemista procede baseado nos privilégios que tem de antemão e que nunca vai questionar. Ele possui, por princípio, direitos que o autorizam a guerrear e que fazem desta luta um empreendimento justo; quem está diante dele não é um parceiro na procura da verdade, mas um adversário, um inimigo errado e nocivo cuja mera existência constitui uma ameaça.”
3. Não aceitar qualquer pessoa no espaço privado. Página de Facebook ou e-mail pessoal, por exemplo, são espaços cuja soberania é privada. Certa vez uma pessoa, cujos comentários eram obtusos e agressivos, reagiu assim a meu pedido de que nunca mais postasse um comentário em minha página: “Vocês liberais são engraçados: defendem o contraditório, mas mandam logo que se cale quem os contesta”. O motivo de meu pedido de silêncio tinha sido o seguinte: após um texto em que eu procurava compreender a articulação entre monoteísmo e perseguição sexual, recebo a seguinte sofisticada argumentação: “Francisco Bosco, sua filhinha é tão linda, duvido que você queira mesmo que ela cresça e vire uma sapatão se atracando com outra sapatão na Avenida Paulista”. Isso vindo da mesma pessoa que, comentando um texto de Vladimir Safatle que eu compartilhara, e no qual ele defendia a extinção da PM, por ser uma polícia formada no entendimento do cidadão como inimigo, me disse: “Se alguma vez você for sequestrado, não tem o direito de chamar a polícia”.
4. Saber que as relações imaginárias costumam estar sujeitas a reversões dialéticas. A linha entre a admiração e a inveja é tênue, e muitos podem se aproveitar de um erro seu (suposto ou verdadeiro) para dar uma guinada de 180 graus na economia narcísica e atacá-lo com indisfarçável prazer.
5. Estabelecer distinções nítidas entre o público e o privado. A mais importante: na dimensão pública suas ideias e atos devem ser justificados em relação a todos; na dimensão privada suas ideias e atos devem ser justificados somente para aqueles que você admite em suas relações pessoais (parece óbvio, mas infelizmente não é).
6. Diante de certos acontecimentos, observar com estranheza seu nome e sua imagem se alienarem completamente do que você pensa e de como você age. Ter a curiosa experiência (uma espécie de unheimlich) de ouvir relatado, de modo distorcido, um episódio que você testemunhou ou protagonizou.
7. Ser agraciado com interlocuções de alto nível — que ajudam a esclarecer, aprimorar ou descartar suas próprias interpretações —, propostas por leitores que o conhecem originalmente apenas na dimensão pública, e passam a tornar-se seus amigos.
8. Habitar muitas vezes conflitos entre interesses públicos e privados, procurando manter fidelidade para com o princípio público.
9. Dizer o que realmente pensa, com a contundência necessária, quando se trata de problemas importantes para a esfera pública. Permitir, entretanto, que a lógica do privado interfira em seus posicionamentos públicos quando o juízo em questão seja de pequena importância (escrever sobre o livro de um amigo, por exemplo).
10. Pensar de acordo com suas ações, mais decisivamente ainda do que agir de acordo com suas convicções. O primeiro caso não admite erros: falsear as complexidades da realidade é uma grave falta com a verdade e uma incursão, com frequência, no moralismo. Já o segundo caso admite erros — e não reconhecer a existência deles significa justamente incorrer no primeiro caso. Karl Kraus: “Os hipócritas morais não são odiosos por agir diferente do que professam, mas por professar algo diferente do que fazem. [...] O condenável não é a traição à moral, mas a moral”.
11. Lamentar ser atacado por argumentos muito mais frágeis do que os seus. E quanto mais frágeis, mais seguros de si. A humildade é constitutiva do verdadeiro pensamento.
12. Tentar separar, o quanto for possível, sua interpretação da realidade e seu próprio narcisismo, de modo que as críticas àquela não sejam tomadas como um ataque ao seu ego.
Francisco Bosco, in oglogo.globo.com/cultura, de 29/05/2013

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