domingo, 31 de março de 2013

A surpresa

Foi um domingo afortunado aquele. O Longras não esperava descascar tão cedo os dois abacaxis mais difíceis de seu elenco de vitalinas: Elvira, uma solteirona magra e míope, que havia dois anos esperava um noivo capaz de suportá-la; e Lindaura, uma dengosa moreninha, que exigia, além de “honesto, trabalhador e fiel”, um rapaz que, se vestisse, no dia da boda, um terno azul-marinho, em vez do usual costume de linho branco.
Para a solteirona magra e míope, apareceu um cidadão viúvo, o Palimércio, com oito filhos. E que andava à cata de madrasta para a pirralhada incorrigível. Tinha sessenta e cinco anos e uma farta dose de reumatismo, que lhe emperrava uma das pernas. Capengava, mas correu ao encontro de sua diva, com estrabismo e tudo, porque ela representava a solução doméstica para o seu caso. A única exigência feita era que lhe mandassem um carro à porta da residência, a fim de transportá-lo à igreja no dia do casório. Porque os táxis andavam escassos e ele não ia lá das pernas.
Para Lindaura, que era atraente e bem apanhada, apareceu o Laurentino, comerciário, branco, boa-pinta, que só tinha como defeito uma amnésia persistente, que o levava a esquecer as coisas mais importantes da vida.
O dono do programa consultou os candidatos sobre as datas dos esponsais:
- Na semana próxima – respondeu Lindaura, antes que o noivo se esquecesse do compromisso assumido.
- Devagar com o andor que o santo é de barro. Tenho de falar com uma alfaiataria, para atender seu desejo.
Quanto ao Palimércio, não haveria problema. Expediria instruções ao garagista para que mandasse buscá-lo no dia marcado.
Convencionou-se o enlace de Elvira com Palimércio e de Lindaura com Laurentino dentro de quinze dias. Os candidatos deixaram o endereço para que, na data certa, o carro e o terno azul-marinho chegassem ao seu destino.
A campainha bateu insistentemente.
Laurentino correu à porta. Abriu-a. Ninguém. Estava preocupado com o terno azul-marinho que encomendara para a cerimônia. E que não chegava nunca. Olhou o relógio. O ponteiro marcava cinco horas. A tarde caía. O alfaiate não mandava a roupa.
A campainha voltou a tocar. Espiou mais uma vez, e nada. Como o ruído continuasse, passou pelo corredor. Ouviu então de onde vinha o barulho timpânico. Não era da porta, não. Era o telefone. Seria o alfaiate desculpando-se da demora? Levantou o fone, ainda metido no pijama de listas.
- Alô.
E do outro lado, uma vozinha meiga, convidativa:
- É o Laurentino?
- Eu mesmo.
- Você está pronto?
Ainda nem sequer havia tomado banho, à espera da roupa, mas reconheceu a voz de Lindaura. Lembrou o compromisso. E teve de mentir.
-  Quase pronto. Só falta pôr a gravata e o paletó.
- Então não demore. Olhe que os padrinhos já chegaram aqui em casa. Às sete horas da tarde estaremos todos na igreja. Ficou bem o terno azul-marinho que escolhemos juntos?
- Uma luva.
- Então você deve estar uma uva. Até já, querido.
Laurentino recolocou o fone no lugar. Só depois é que considerou a questão. Ele havia prometido à noiva que se casaria de escuro e gravata cinza-clara, tendo escolhido com ela uma roupa feita. Azul-marinho. Teria esquecido, por acaso, de dar o endereço? Não. Lembrava-se de que o fizera por escrito. O que podia acontecer é que a direção do programa se houvesse equivocado, mandando o terno para outro noivo. Como a encomenda não chegava, o remédio era apelar para o costume de linho branco que a lavanderia mandara na véspera, engomadinho e reluzente. Lindaura – a sua prometida, com a qual deveria casar-se naquele dia, dentro de momentos – detestava essa indumentária, que lhe causava a sensação de casamentos feitos no Palácio da Justiça, ali na rua Dom Manuel, entre gente do povo. Ela suspirava por um casamento de gente bem. Não tendo outra solução, envergou o costume de linho. Cinquenta minutos antes da hora do casório pára, em frente à casa, um carro de luxo, com motorista em grande uniforme.
- Vim buscar o noivo.
- Sou eu mesmo.
A sorte o estava ajudando. Não contava com aquela ajuda da providência.
- Para onde vamos?
- À praça, na igreja Nossa Senhora da Paz.
O motorista conferiu o endereço com o papel que tinha no bolso. Era o mesmo. Não teve dúvida em receber o passageiro. Ainda mais que estava de branco e sapato preto, assim como quem vai casar. Laurentino olhou o relógio, esquecido de que adiantara o ponteiro a fim de não chegar atrasado. Para evitar dúvidas, pediu ao motorista que aumentasse a velocidade. Não desejava que Lindaura ficasse à sua espera. Pela primeira vez na vida queria cumprir a palavra dada a testar sua pontualidade. Em poucos minutos, o automóvel ganhou a praça. Ao descer dele, Laurentino ouviu os últimos compassos do coro, e deduziu que, mesmo tendo corrido, chegara atrasado. Que a noiva já devia haver entrado na igreja, porque não havia aglomeração na calçada. Convidados e curiosos estavam todos lá dentro, sentados ou entupindo a porta e a passagem. Que fez, então? Para ganhar tempo, embarafustou pela ala direita do templo, onde uma porta dava acesso ao altar. Vendo a noiva já de joelhos em frente ao padre, não discutiu. Acotovelou os curiosos e ganhou o degrau em que, encolhida e genuflexa, ela o esperava. Pacientemente. De cabeça baixa, como se estivesse em oração. Ou em transe.
Prosternou-se a seu lado, pedindo em voz baixa, quase imperceptível.
- Perdão pelo atraso. Depois explicarei.
Contrafeita, a moça não mudou de posição. Nem sequer moveu a cabeça para ouvir a desculpa. Devia estar impaciente, aborrecida. Por duas coisas: primeiro, pela demora do noivo, depois por vê-lo chegar de branco, em vez de terno escuro que ela mesma escolhera com ele. Sentindo a frieza com que era recebido, Laurentino justificou-a, procurando na humildade, no recolhimento, corrigir, ou, pelo menos, atenuar as culpas que carregava. À semelhança da futura esposa, enterrou a cabeça no peito, ouviu as palavras sacramentais que o sacerdote começava a proferir. Atordoados pelos imprevistos e pela série de acontecimentos que marcavam a boda, ao serem interrogados se estavam de acordo em tomar-se por legítimos esposos, ambos proferiram um sim convencional, que era mais de mau humor que de satisfação. Em todo caso, um sim. Estavam casados, irremediavelmente casados pela igreja.
Terminada a cerimônia, levantaram-se lentamente, dirigindo-se à sacristia, onde deveriam receber os cumprimentos.
Quando a noiva levantou o véu, Laurentino recuou espavorido e estupefato: tinha a seu lado uma criatura velha e vesga, que não era outra senão Elvira, cuja miopia não a deixou ver um palmo diante do nariz.
Na confusão da pressa, alguém trocara os endereços, remetendo ao Palimércio o terno que devia servir ao Laurentino. E despachando para este o carro que devia ir buscar o outro.
O resultado é que Laurentino chegara à igreja meia hora antes de sua vez. E Palimércio, atrasado e esbaforido, meia hora depois, quando Lindaura transpunha a porta do templo e o coro começava a soltar as primeiras notas da Marcha Nupcial.
Osvaldo Orico, in A vida imita os contos

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