domingo, 29 de abril de 2012

Inocência


Seamos todos locos
Santa Teresa

As pessoas que frequentam o Café Vermelhinho, em frente à abi — centro das jovens artes plásticas do Rio, e onde, depois das lides diárias, alguns escritores costumam também descansar o espírito —, conhecem, pelo menos de vista, o alagoano Antônio Galdino da Silva, autor do inocente poema que hoje vos trago para vos purificar dos males de serdes sociais. Trata-se, o poeta, de um caboclo escuro, cor de melaço rico, com uns olhos distantes e um bigodinho frio num rosto vigoroso e franco de nordestino. Capenga, passeia-se itinerante, a bengala quase chapliniana numa das mãos, na outra um leque de bilhetes de loteria, num trabalho persuasivo de oferecer fortunas, mas que nunca chega a ser maçante.
Não há aluno da Escola de Belas Artes que não lhe queira bem. Tenho certeza de que, numa batalha estudantil, Antônio Galdino da Silva brigaria até o fim em defesa de sua gente — e nisso ele me recorda o velho português Carmona, da Faculdade de Direito do meu tempo, que um dia passou as manoplas duras como um cadeado em volta das grades do portão da escola e explicou aos tiras, que do lado de fora se esforçavam por entrar: “Nos meus m’ninos ningaim bate!”.
Antônio Galdino da Silva apareceu de repente fazendo poesia. Alfredo Ceschiatti, escultor novo do grupo revolucionário das Belas Artes, cuja figura sonolenta como que já se vai fixando pictoricamente entre as vermelhidões do agitado café carioca, compareceu-me outro dia com essa “Santíssima Noemy, em Prece a Deus pelo seu Destino e sua Felicidade”, que Sombra ora vos dá como iguaria rara, em bandeja de prata. O poema, não saberia dizer como, levou-me atrás... ao tempo em que eu, menino de dezoito anos, descobria, entre confuso e maravilhado, no sossego de Itatiaia, a música do texto das Iluminações, de Rimbaud, e deixava-me levar, bêbado de poesia, no seu louco navio, em meio aos “azuis verdes” do mar e do céu confundidos pela visão do poeta. Não poderia explicar a aproximação. Não há nenhuma semelhança efetiva entre esses dois lirismos. São inocências diversas, fruto de naturezas diferentes. Talvez, quem sabe, a mesma tendência em ambos para a sabedoria das palavras inexistentes, inventadas no paroxismo da criação, e capazes de confundir num só organismo cores, climas, perfumes, imagens e ritmos perdidos — quem sabe...
É realmente extraordinário. Um poema nasce de um voto de amor e, súbito, no milagre de uma palavra, reúne tudo o que, de tão vago, poeta nenhum saberia dizer diferentemente sem se tornar banal:

Em sua vida cheia de inverderume céu!

Inverderume tem tudo: o inverno, a cor verde dos campos, uma luz que não chega a se precisar, a ideia da divindade feminina, um amanhecer e uma tarde. E depois deste achado, o poeta atinge, sem mais, uma altitude bíblica. A linha seguinte contém todo o mistério da mulher em sua santidade física. Esses acatos das trevas alucinantes são uma das coisas mais doidas que já li. Como interpretar, sem desfazer o mundo do sentido que circula no espaço dessas três palavras? Poderá haver sublimação maior?

Dos seus acatos das trevas alucinantes...
Em sacraremos das suas inlomares
Que vêm-me varejando os meus clarins.
E por quem é que vou gritando neste caminho?
É por Deus! é por Deus! é por Deus do Céu!...

Parece Isaías. Não são muitos os momentos maiores no tremendo poeta bíblico. Os versos descem numa cadência onde se alternam os mais terríveis gritos e as mais litúrgicas pacificações. O verso: “Em sacraremos das suas inlomares” solta pombas místicas no corpo silencioso de uma nave. O decassílabo que se segue é Guernica, de Picasso, sem tirar nem pôr. Os dois versos finais da estrofe são como a memória de outras vozes, as dos Profetas, a de Saulo na estrada de Damasco, perseguido de Deus...
Isso tudo, tão alto porque tão inocente. Se houvesse propósito, alguns desses versos perderiam talvez em conteúdo, embora me pareça que sua qualidade formal independa do fato de terem sido feitos por um homem simples. Mas sabermos que foram escritos por Antônio Galdino da Silva, bilheteiro, dá-lhes um panejamento insopitável.
Aqui e ali, o poeta lembra Augusto Frederico Schmidt, o Schmidt dos poemas proféticos e do “Canto da noite”:

Noemy anda perdida nas matas do Araquém?
Não! Não! Ainda não! Noemy está pensando
Está sonhando, está dormindo em casa
Da sua amiguinha e companheira inseparável!...

Só Schmidt é capaz de trabalhar conscientemente um valor poético de surpresa com tão cândida mestria. Senão, confronte-se:

Penso num vago luar, penso na estrela
Na andorinha do céu avoando, avoando...
Adeus, Julieta, vou fugir daqui!
(“O canto da noite”)

Em certos trechos surge o músico, o modinheiro que vive em potencial na alma brasileira de Antônio Galdino da Silva, trazendo acordes de frases suburbanas a Uriel Lourival, o divino poeta da valsa “Mimi”:

[...] e o sol brilha elegantemente
Se debruça aos meus pés chorando tanto
Que por uma credencial do sol brilhante
E, espalhadamente, é de minha Aleluia, Aleluia!...

Não vos poderei dizer mais. Relede o poema no silêncio de vós mesmos, e meditai depois sobre este verso puríssimo de um homem do povo que ganha a vida vendendo bilhetes, e cuja cor, no espectro, reúne todas as cores:

Felizes não são estes ainda que me veem de longe...
Vinicius de Moraes (setembro de 1941), in Para uma menina com uma flor

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