quinta-feira, 29 de março de 2012

A juventude dos deuses

Tudo o que se passou
É mentira
Porque o que é o ser
Não pode nunca mais deixar de sê-lo.
Ontem nunca existiu, não te levantaste nem dormiste.
A hora que passou não passou, onde está ela agora?
Tudo o que foi, e tudo foi, é mentira e unicamente mentira.
Algo está aqui, mas este algo não é o teu passado
Nem o do mundo, nem o do Universo.
Nunca nada existiu.
Tudo acabou de ser criado, agora.
Não perguntes, deploravelmente, como pôde Deus criar o mal,
Pois jamais houve mal.
Nunca um homem nasceu.
Nunca morreu homem algum.
Nunca ninguém amou ninguém.
Nunca houve qualquer guerra sobre a terra.
Tua mãe não te pariu, tua avó não pariu a tua mãe.
César não atravessou o Rubicão, a América não foi descoberta.
Nada disso jamais aconteceu, o único acontecimento
É estares aqui, neste instante, espectador desta mentira enorme
E não existires também.
Amanhã serás tão mentira quanto Napoleão ou um amor perdido,
A História nunca ocorreu, jamais um homem foi assassinado,
Savonarola não marchou para a fogueira, não ergueram a muralha da China,
Ela está lá, a muralha, agora, mas foi erguida neste instante,
Nunca existiu também, embora surja diante dos teus olhos.
Jamais alguém deu uma esmola, jamais alguém agonizou no mundo,
O tempo não permite a verdade de nada, exceto de um olho
Que vê tudo isso, e que não é o teu, pois jamais nasceste.
Sonho e vácuo. Rumor. Mentira. Um filme que passa
E a cada fotograma se destrói, eternamente.
Nada te pode ferir. Tua dor é mentira, escárnio a tua honra.
O Tempo é o parricida do ser. O Tempo é que te liberta
De tudo. No Tempo és nada. No Tempo
Não és. Nada é. Só um olho
Nem teu nem meu fita essa fanfarra inútil,
Essa torre de nada
Chamada Desespero.
Só esse olho fita
E existe, como na noite
A um velho filme que se esvai
Branco e negro nas trevas.
Tua mulher não te pode trair. Tua casa não pode pegar fogo.
Nada existiu jamais.
Nem um beijo.
Nem um crime.
Tu apenas existes neste instante
Invadeável
Onde és o olho para o olho que não passa,
Onde és o ator da peça prolixa que vai terminar,
Onde és a vagabunda para o ato de doze minutos,
O substituível, o dispensável
Espectador da lenda
Que nunca se passou.
Nada. Apenas tu aqui, sozinho,
Pavorosamente sozinho, miseravelmente sozinho,
Envolvido com trapos de tecido fino na borrasca enorme,
Na borrasca imóvel, no furacão sem vento, na geleira sem frio
Envolto em trapos.
A casa em que nasceste esses trapos,
O sorriso de teu pai esses trapos,
A batalha de Salamina, o canto de Akhenaton esses trapos,
Os seios daquela que forjaste, a queda de Constantinopla esses trapos,
Cristo subindo o Calvário, os soluços de tua filha,
A caminhada nas falésias esses trapos, Atenas esses trapos,
Esses trapos teu rosto aos seis anos, as montanhas, a noite,
As ondas que arrebentam, as constelações esses trapos,
Tudo esses trapos contra a tormenta de estares aqui
Sozinho,
Tu,
O olho do Olho que não te vê e não és,
Agora, no agora de onde jamais poderás fugir.
Nada nunca aconteceu,
Nada,
Exceto esse incansável olho fitando a lenda que se esgarça
Cada vez mais longe,
Cada vez mais lenda,
Como um arranhado filme roufenho e anacrônico
Onde todos os atores morreram
Farolando numa sala vazia
E negra e branca
Na noite.

Alexei Bueno, in Poesia reunida. 

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