terça-feira, 27 de março de 2012

Carta de Erasmo de Roterdam a Thomas Morus

Achando-me, dias atrás, de regresso da Itália à Inglaterra, a fim de não gastar todo o tempo da viagem em insípidas fábulas, preferi recrear-me, ora volvendo o espírito aos nossos comuns estudos, ora recordando os doutíssimos e ao mesmo tempo dulcíssimos amigos que deixara ao partir. E foste tu, meu caro Morus, o primeiro a aparecer aos meus olhos, pois que malgrado tanta distância, eu via e falava contigo com o mesmo prazer que costumava ter em tua presença e que juro não ter experimentado maior em minha vida. Não desejando, naquele intervalo, passar por indolente, e não me parecendo as circunstâncias adequadas aos pensamentos sérios, julguei conveniente divertir-me com um elogio da Loucura. Por que essa inspiração? perguntar-me-ás. Pelo seguinte: a princípio, dominou-me essa fantasia por causa do teu gentil sobrenome, tão parecido com Mória quando realmente estás longe dela e, decreto, ainda mais longe do conceito que em geral dela se faz. Em seguida, lisonjeou-me a ideia de que essa engenhosa pilhéria pudesse merecer a tua aprovação, se é verdade que divertimentos tão artificiais, não me parecendo plebeus, naturalmente, nem de todo insulsos, te possam deleitar, permitindo que, como um novo Demócrito, observes e ridicularizes os acontecimentos da vida humana. Mas assim como, pela excelência do gênio e de talentos, estás acima da maioria dos homens, assim também, pela rara suavidade do costume e pela singular afabilidade, sabes e gostas, sempre e toda parte, de habituar-se a todos e a todos parecer amável e grato.
Por conseguinte, gostarás agora, não só de aceitar de bom grado esta minha pequena arenga, como um presente do teu bom amigo, mas também de colocá-la sob o teu patrocínio, como coisa sagrada para ti e, na verdade, mais tua do que minha. Já prevejo que não faltarão detratores para insurgir-se contra ela, acusando-a de frivolidade indigna de um teólogo, de sátira indecente para a moderação cristã, em suma, clamando e cacarejando contra o fato de eu ter ressuscitado a antiga comédia e, qual o novo Luciano, ter magoado a todos sem piedade. Mas os que se desgostarem com a ligeireza do argumento e com o seu ridículo devem ficar avisados de que não sou o seu autor, pois que com o uso se familiarizaram numerosos grandes homens. Com efeito, muitos séculos antes, Homero, escreveu a sua Batraquiomaquia, Virgílio cantou o mosquito e a amoreira, e Ovídio a nogueira; Policrates chegou a fazer o elogio de Busíris, mais tarde impugnando e corrigido por Isócrates; Glauco enalteceu a injustiça, o filósofo Favorito louvou Tersites e a febre quartã; Sinésio a calvície e Luciano a mosca parasita; finalmente, Sêneca ridicularizou a apoteose de Cláudio, Plutarco escreveu o diálogo do grilo co Ulisses, Luciano e Apuleio falaram do burro; e um tal Grunnio Corocotta fez o testamento do porco, citado por São Jerônimo. Saibam, pois, esses censores que também, para divertir-se, já joguei xadrez e montei em cavalo de pau, como um menino. Na verdade, haverá maior injustiça do que, sendo permitida uma brincadeira adequada a cada idade e condição, não poder pilheriar um literato, principalmente quando a pilhéria tem um fundo de seriedade, sendo as facécias manejadas apenas como disfarce, de forma que quem as lê, quando não seja um solene bobalhão, mas possua algum faro, encontre nelas ainda mais proveito do que em profundos e luminosos temas? Que dizer, então, de alguém que, com um longo discurso, depois de muito estudar e fatigar as costas, elogiasse a Retórica ou a Filosofia? Ou de alguém que escrevesse o elogio de um príncipe, outro uma exortação contra os turcos, outro fizesse horóscopos e predições baseado nos planetas, outro questões de lana-caprina e investigações futilíssimas? Portanto, assim como não há nada mais inepto do que aborda graves argumentos puerilmente, assim também é bastante agradável tratar de igual forma as pilhérias, que não têm aqui outro objetivo senão o pilheriar.
Quanto a mim, deixo que os outros julguem esta minha tagarelice; mas, se o meu amor-próprio não deixar que eu o perceba, contentar-me-ei de ter elogiado a Loucura sem estar inteiramente louco. Quando à imputação de sarcasmo, não deixarei de dizer que há muito tempo existe a liberdade de estilo com a qual se zomba da maneira por que vive e conversa o homem, desde que não se caia no cinismo e no veneno. Assim, pergunto se se deve estimar o que magoa, ou antes o que ensinar e instrui, censurando a vida e os costumes humanos, sem pessoalmente ferir ninguém. Se assim não fosse, precisaria eu mesmo fazer uma sátira a meu respeito, com todas as particularidades que atribuo aos outros. Além disso, quem se insurge em geral contra todos os aspectos da vida não deve ser inimigo de ninguém, mas unicamente do vício em toda a sua extensão e totalidade. Se houver, pois, alguém que se sinta ofendido por isso, deverá procurar descobrir as suas próprias mazelas, porque, do contrário, se tornará suspeito ao mostrar receio de ser objeto da minha censura. Muito mais livre e acerbo nesse gênero literário foi São Jerônimo, que nem sequer perdoava os nomes das pessoas! Nós, porém, além de calarmos absolutamente os nomes, temperamos o estilo, de forma que o leitor honesto verá por si mesmo que o meu propósito foi mais divertir do que magoar. Seguindo o exemplo de Juvenal, em nenhum ponto tocamos na oculta cloaca de vícios da humanidade, nem relevamos as suas torpezas e infâmias, limitando-nos a mostrar o que nos pareceu ridículo. Se, apesar de tudo, ainda houver ranzinzas e descontentes, que ao menos observem como é bonito e vantajoso ser acusado de loucura. Com efeito, na boca da que trouxemos à cena e fizemos falar, foi necessário pôr os juízos e as palavras que mais se coadunaram com o seu caráter. Mas, para que hei de te dizer todas essas coisas, se és emérito advogado, capaz de defender egregiamente mesmo as causas favoráveis?
Sem mais, eloquentíssimo Morus, estimo que estejas são e tomes animosamente a parte de tua loucura.

Erasmo de Roterdan, in Elogio da Loucura. Tradução Paulo M. Oliveira.
Esta é a carta escrita por Erasmo de Roterdam a Thomas Morus em junho de 1508. É uma introdução a obra Elogio da Loucura 

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