sábado, 30 de abril de 2011

Sertão de Metal



Já não é bom rever nosso passado
Agora é ruim prever nosso futuro
Há dor nos olhos, vergonha no peito
Desse meu direito de um mano ruim
De um mano ruim.

Vejo o sertão de Câmara Cascudo
Mal empalhado, peça de museu
O sábia de metal mal polido
Raízes do passado
E meu bumba-meu-boi morreu
Meu bumba-meu-boi morreu.

E vejo uma flora de borracha
Tão nova, abrigando os juritis
Dos artesãos oficiais suicidas
E vejo lá no campo
Uma voz mal programada
Chamando o gado por curral
Sem aboiar
Ê, gado, oi
Ê, gado, oi.

Um cão de parafuso sem o seu latido
Urubu de urânio urinando óleo
Mandacaru, maracatu mirou-se na miragem.

A ecologia chora suas dores
A flora e a fauna falando das flores
Tudo é coisa pro ano 2000
Eu sei que ninguém viu
O sertão de metal
Mas eu sonhei
Gado, oi
Ê, gado, oi.

Raimundo Círio e Léo Batista, cantores e compositores pauferrenses

A singular e pitoresca Saga da criação de "Sertão de Metal", exclusivo, no Rapadura Cult

Elilson e Léo Batista divagando

O fim do forró


O ayapaneco, língua falada no México há muitos séculos, está ameaçada de sumir. Só restam dois índios que a falam com fluência. Um tem 75 anos, o outro tem 69, mas os dois são “intrigados”. Não se falam há muito tempo, e com isso o ayapaneco está em vias de extinção. Algo parecido está ocorrendo com o forró nordestino. Já foi a música mais tocada no país, no tempo de “Asa Branca”. Agora, está sendo suplantada por outros tipos de música que espertamente lhe tomaram o nome, invadiram seu território, colonizaram seu público. Se os falantes do forró não começarem a conversar e a tomar providências juntos, essa idioma musical deixará de existir. Ou melhor, haverá no Brasil inteiro uma coisa chamada “forró” atraindo dezenas de milhares de jovens para as festas. Mas – nomes à parte – aquele tipo de música não existirá mais.

O forró está sendo esmagado pelo chamado “forró de plástico”, que é uma musiquinha alegre, sacudida, boa de dançar, com letras bobas ou ruins com-força. É uma variedade da lambada; recorre ao palavrão e a dançarinas seminuas, o que em princípio não é pecado, a não ser quando se torna (como é o caso) uma receita obrigatória e a principal atração. É duro assistir um show de uma hora onde a melhor coisa do show são as pernas das dançarinas, e as frases que fazem vibrar a platéia são apenas as que dizem palavrões (em geral insultando parte da platéia). Uma ou duas músicas assim... Vá lá que seja. O show inteiro? Quem ouve isso, e gosta, merece o que está escutando.

Além disso, o forró de plástico recorre a práticas que corroem há tempos nosso mercado musical. A primeira é o jabá (suborno de radialistas e de diretores de rádios), que tem dois tipos: o “jabá pra tocar minha música” e o “jabá pra não tocar de jeito nenhum a música de Fulano e Sicrano”. Ganhar concessões de rádios e usá-las para divulgar as próprias músicas é uma versão legalizada desse processo, mas é legal somente porque os critérios para concessões de rádios e TV no Brasil são uma calamidade. A grande imprensa combate, como se fosse o fim do mundo, a cópia não-autorizada de CDs ou o download gratuito de músicas. Por que não fala nos critérios de concessão de rádios e TVs, que são uma catástrofe ainda pior para o país?

O forró de plástico está criando a monocultura da produção de uma coisa única, repetida, uniforme. Monocultura é o contrário de cultura. Cultura é o reino da diversidade, das manifestações livres dos indivíduos e dos pequenos grupos. A monocultura é uma imposição de-cima-para-baixo, feita por um grupo que fabrica e vende uma música igual até que o povo não suporte mais a música igual mas não saiba mais como fazer a música diferente, e com isso as duas morrerão juntas. O forró de plástico destrói o forró e destruirá a si mesmo no futuro. Sua repetitividade e mau gosto esgotam em seu próprio público o prazer e o significado de ouvir música.

Artigo de Bráulio Tavares, postado no Mundo Fantasmo em 29/04/2011

Cândido Portinari: a terra e o povo brasileiro em cores


De suas mãos nasceram a cor e a poesia, o drama e a esperança de nossa gente. Com seus pincéis, ele tocou fundo em nossa realidade. A terra e o povo brasileiros - camponeses, retirantes, crianças, santos e artistas de circo, os animais e as paisagens -  são a matéria com que trabalhou e construiu sua obra imortal, como bem afirmou Jorge Amado.
Sob o Estado Novo de Getúlio Vargas, era acusado de antinacionalista por retratar os trabalhadores com braços e pernas desproporcionais, como se sofressem de elefantíase. Na verdade, as telas de Portinari são verdadeiro hino de louvor àquelas pessoas, como explica o pintor:
"Impressionavam-me os pés dos trabalhadores das fazendas de café. Pés disformes. Pés que podiam contar uma história. Confundiam-se com as pedras e os espinhos. Pés sofridos com muitos e muitos quilômetros de marcha. Pés que só os santos têm. Sobre a terra, difícil era distingui-los. Os pés e a terra tinham a mesma moldagem variada. Raros tinham dez dedos, pelo menos dez unhas. Pés que inspiravam piedade e respeito. Agarrados ao solo, eram como alicerces, muitas vezes suportavam apenas um corpo franzino e doente. Pés cheios de nós que expressavam alguma coisa de força, terríveis e pacientes".
              “A inveja causa àquele que a alimenta cinco prejuízos, antes mesmo de poder fazer mal à pessoa invejada: o invejoso experimenta um pesar permanente; sofre um tormento inútil, do qual não será recompensado por ninguém; atrai sobre si a cólera de Deus; fecha as portas da assistência divina; e seu vício não lhe conquista nenhuma  estima por parte dos homens”.
  Provérbio árabe  

Naquela mesa



Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre o que é viver melhor
Naquela mesa ele contava histórias
Que hoje na memória eu guardo e sei de cor
Naquela mesa ele juntava gente
E contava contente o que fez de manhã
E nos seus olhos era tanto brilho
Que mais que seu filho
Eu fiquei seu fã
Eu não sabia que doía tanto
Uma mesa num canto, uma casa e um jardim
Se eu soubesse o quanto dói a vida
Essa dor tão doída, não doía assim
Agora resta uma mesa na sala
E hoje ninguém mais fala do seu bandolim
Naquela mesa tá faltando ele
E a saudade dele tá doendo em mim
Naquela mesa tá faltando ele
E a saudade dele tá doendo em mim.

Composição: Sérgio Bittencourt
Chora o cavaco de Nilze, envolve a voz de Zélia, mas o Bandolim magistral de Hamilton de Holanda se sobrepõe. 
“O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não poupariam ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém”.
  Jean-Jacques Rosseau  

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.


Antonio Candido, ao analisar o poema, explica: "... a sociedade oferece obstáculos que impedem a plenitude dos atos e dos sentimentos... A leitura optativa a partir do terceiro verso (que se abre para os dois lados, sendo fim do segundo ou começo do quarto) confirma que o meio do caminho é bloqueado topograficamente pela pedra antes e depois, e que os obstáculos se encadeiam sem fim".

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Inédito, no Rapadura Cult*


A Dominadora


Confesso que sou dominado por ela,
Que diz o que devo fazer,
O que devo comer,
O que devo beber:
            minha diabetes é fogo!

Antônio Francisco

*O Rapadura Cult ousado e abusado: publica, com exclusividade, um surpreendente poema do cordelista mossoroense Antônio Francisco.
“Não é difícil ser humilde quando se é grande. Difícil é ser humilde quando se é medíocre. Como é fácil ser generoso quando se é rico e não quando se tem pouco”.
                                         Vergílio Antônio Ferreira

Corrigir é preciso (pero no mucho)

Foto - Elilson 

O Sermão do Bom Ladrão (Trechos)

“Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando pescadores, repreendeu-o muito Alexandre por andar em tão mau ofício; porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres... O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas que levam, de que eu trato, são os outros – ladrões de maior calibre e de mais alta esfera... Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam  cidades e reinos; os outros furtam debaixo de seu risco, estes, sem temor nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam.”
                                      Pe. Antônio Vieira
“Governo! Sempre governo! O governo devia ser o agricultor, o industrial, o comerciante, o filósofo, o sacerdote, o pintor, o arquiteto. Tudo! Quando um país abdica assim nas mãos dum governo toda a sua iniciativa, e cruza os braços, esperando que a civilização lhe caia feita das secretarias, como a luz lhe vem do sol, esse país está mal: as almas perdem o vigor, os braços perdem o hábito do trabalho, a consciência perde a regra, o cérebro perde a ação. E como o governo lá está para fazer tudo, o país estira-se ao sol e acomoda-se para dormir. Mas, quando acorda, é como nos acordamos com uma sentinela estrangeira à porta do arsenal.
                                        Eça de Queirós

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Conto Inédito, no Rapadura Cult*

A cura

            Os transtornos de Geraldo, que o médico diagnosticou como angústia, talvez viessem de muito longe. Do tempo em que se enchia de medo diante da palmatória do professor Silvino, lembrado pelo seu carrancismo e pelas duas filhas, que faziam às vezes de manicure para que os namorados gastassem as tardes com as mãos em suas coxas.
Um dia, misturando gíria à fala rebuscada de um escritor que andou lendo, o professor ameaçou o mais afoito e gabola deles na frente de uns velhos que jogavam gamão na farmácia Triumpho: dar-lhe-ia um murro no alto da sinagoga ousasse introduzir o membro viril nas coxas de sua filha Naldeci. O sorriso no canto da boca dos anciãos não foi bem pelo uso da mesóclise, nem tampouco pouco pelo “membro viril”, mas porque sabiam que o estrago já tinha sido feito.
Especulou-se também que as esquisitices de Geraldo tivessem matriz nas surras de cinturão do pai, quase sempre acompanhadas de um banho com água de sal e uma prisão caseira de trinta dias, além da proibição expressa de não chegar à janela. A prisão era decretada por escrito, o grafite feito com carvão preto nas paredes pintadas de amarelo-ovo.
Uma dessas surras, e ele já era um rapazote, apanhou porque no meio de um baile, numa casa de família, cuspindo conhaque, pediu de uma vez só a mão e a xiranha da moça com quem dançava. Brigou com a dona da casa, que de repente apareceu à sua frente com uma trave de janela, com o sargento que quis prendê-lo na hora, e passou duas semanas escondido nas moitas, tratando com raiz de mato uma febre sem explicação.
Desses e outros motivos parece que o mais marcante e influente foi mesmo o susto na Serrota. Quando era menino, um papa-figo por pouco não o levou preso dentro de um saco. Tinham ido ele e o irmão menor buscar uma rês no pasto. Espernearam, gritaram tanto que o velho morfético, magro e amarelo da cor de barro, os deixou escapar, zarpando os dois pelo capim alto. Até hoje Geraldo não sabe se foi mais uma brincadeira de aterrorizar criança ou se o infeliz queria mesmo era se curar às custas de seu fígado, pois era do conhecimento de todo mundo que os leprosos se curavam comendo o fígado dos meninos. 
Daí por diante andou aéreo, deslocando o pensamento para o prazer que podiam lhe proporcionar as mulheres, porque àquela altura fantasiar era melhor negócio que ficar nas recordações. Imaginava-as nuas, trazendo-as com a mente de muito longe, do passado e do futuro, recebendo-as e delas se despedindo. Queria porque queria se transformar numa mosca varejeira, que gruda na pele, para entrar na alcova das moças virgens, vê-las dormindo, os peitos e o sexo arfando lentamente, embriagado pelos incensos de uma mulher no fulgor da mocidade.
Recentemente não era mais só a angústia a incomodá-lo. Também uma ponta de remorso por conta do caráter que entortava sem ele saber como ou por quê, do mesmo jeito que entortavam a um leve roçar dos dedos as colheres de um   certo prestidigitador judeu.
Fora proibido de entrar no “Chantecler” e no “Moulin Rouge”, dois cabarés famosos que ficavam na entrada do Recife Velho, e cujas luzes à noite amarelavam as águas ainda não enxofradas do Capibaribe. Ganhando um salário de professor, pequeno e com atraso de meses, que mal dava para pagar a pensão e a faculdade, adquirira o hábito nefasto de ludibriar as mulheres que faziam a festa daquele largo de soldados, marinheiros e estudantes. 
O resto do pouco dinheiro gastava no bar Paratodos, consumido em doses de ¨cuba libre¨,  um olho nas brigas de marinheiro, a navalha deslizando na pala, e o outro conferindo as louras de cabelo oxigenado que entravam por uma porta e saíam por outra.
Encerrava a noite num quartinho de tabique, aproveitando a ocasião em que as mulheres se lavavam agachadas na bacia de alumínio, para descer, sem pagar, os cinco andares que rangiam e ameaçavam ruir de velhice. Pulava os degraus de três em três, lépido como um guri, mas não escapava da praga que era sempre a mesma, a maldição ecoando nas escadas: “Vai nascer um câncer na cabeça do pau, filho da puta”. Algumas vezes esquecia no criado-mudo os óculos de grau, e tornava a subir ao quarto, arfante e humilhado, a cara lavada.  Dessa vez era o zunido de um tamanco, veloz e certeiro, que ressoava nos seus ouvidos.
            Alguma coisa de diferente, porém, e alvissareira, aconteceu na primeira tarde em que Dora, com farda de colegial, passou na porta de seu escritório, onde nenhum cliente havia aparecido desde a data da instalação. Passou, sorriu, e noutras tardes foi deixando sobre a mesa de jacarandá versos de mocinha, banais e sem imaginação.
            Tal doçura para um homem deserto de afagos eclipsou a má poesia. Que vantagem levaria um verso, ainda que fosse perfeito e tivesse o impacto da colisão de meteoros – pensava – se comparado à beleza de Dora, a penugem rala entre as sobrancelhas, uma covinha no queixo e o riso largo e despreocupado de quem nunca quis saber da morte?
            Dora tinha só dezoito anos quando Geraldo se apaixonou por ela. E como se dá com os apaixonados, ficaram esquecidos ou relegados a segundo plano os temores e problemas que empestavam o seu cotidiano. Tirou os pés do chão, e deixou a cabeça repousar na maciez das nuvens.
A fase turva do amor não o privou, contudo, de alguma lucidez. Viu como eram idiotas aquelas consultas ao doutor Gil Brás, o psiquiatra classificando e dando rótulo à doença, mais parecendo um detetive escondido por trás de um abajur na sala mal iluminada: “Não entendo por que você não melhora”. Para completar o desagrado, uma enxurrada de calmantes e as injeções de “Pacatal” que provocavam nele, na volta de ônibus para casa, um tremor de malária.
            Num gesto impulsivo, como era de seu temperamento, quebrou as injeções uma por uma e atirou no quintal a bacia de tranquilizantes, que, por serem amarelos e parecidos com caroços de milho, deram às galinhas a maravilha de um sono de três dias.
            Na manhã seguinte levou Dora ao zoológico de Dois Irmãos, onde à época havia pequenas ilhas de mato. Numa delas, com palavras ternas, comuns ao homem somente nos alentos da paixão, a desvirginou sobre uma camada de folhas de eucalipto.  
 Geraldo, nas alvas do amor, se deu conta de como é bom viver sem tormentos, e lembrou-se da lição de Schopenhauer que lhe repassara dias antes seu colega Brito Rabelo: a felicidade nada mais é que a suspensão da angústia.
Dora, por sua vez, continuou simples como era, vendendo perfumes a domicílio com a mesma graça com que deixava no escritório seus versos de rima gratuita. Mas a sua poesia teve sorte e melhorou. À noite, no silêncio do bairro tranquilo de Casa Amarela, lembrava-se enlevada de Geraldo e do cheiro do eucalipto, e escreveu que naquele dia “as folhas aromatizavam a tarde”.

*O Rapadura Cult, fomentador literário, mais uma vez inovando: a publicação do belíssimo Conto inédito A Cura, enviado gentilmente por Demétrio Diniz, escritor de Alexandria-RN, radicado em Natal.

Se eu quiser falar com Deus



Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar

Gilberto Gil

Lavoisier

Na poesia,
natureza variável
das palavras,
nada se perde
ou cria,
tudo se transforma:
cada poema,
no seu perfil
incerto
e caligráfico,
já sonha
outra forma.

Carlos de Oliveira, in Sobre o Lado Esquerdo
“O leitor atento, verdadeiro ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por ele faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida”.
                   Machado de Assis, in Esaú e Jacó
“Uma vida inteira de felicidade! Nenhum homem vivo conseguiria suportá-la. Seria o inferno”.
  George Bernard Shaw  

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Pérolas do Mundo Oficial


• Laudo de perito judicial descrevendo propriedade confiscada:
"Barracão com pé direito de 5 metros e pé esquerdo de 4".
• Avaliação feita por oficial de justiça:
"Crucifixo, em madeira, estilo country - colonial, marca INRI. Sem número de série".

• Avaliador sobre bens para penhora:
"O material é imprestável mas pode ser utilizado".

• Termo de encerramento de laudo judicial no Fórum João Mendes, em São Paulo:
"Os anexos seguem em separado".

• Relatório de um fiscal do Banco do Brasil:
"Desconfio que o mutuário pretende pagar o débito".

• Relatório de financiamento do BB:
"A máquina elétrica financiada é toda manual e velha".
• Relatório de um perito do BB:
"Visitamos o açude nos fundos da fazenda e depois de longos e demorados estudos constatamos que o mesmo estava vazio".

• Memorando de funcionário justificando falta ao serviço:
"REF. Cobra
"Comunico que faltei ao expediente do dia 14 em virtude de ter sido mordido pela epigrafada".



Postado em Millôr Online

A Guitarra é uma Mulher

No carnaval você sumiu,
sem notícia nem recado
Você não vê porque não quer
a guitarra é uma mulher.
Ali no chão ela ficou
e outros dedos lhe tocaram ,
Você não vê porque não quer
a guitarra é uma mulher.

Muitos irão tocar as cordas da beleza
e com certeza, mesma fome e amor,
tantos virão que nem você
num breve instante
e deixarão uma canção nascer
pra que tudo seja uma ilusão.

No carnaval você não viu
outras mãos lhe dedilharam ,
não leve a mal se eu lhe disser,
a guitarra é uma mulher.

Outros virão tocar as cordas do desejo,
entre os arpejos, beijos, musicais.
Outros terão que nem você um breve instante
e deixarão a ilusão viver
pra que tudo seja uma canção.

Você não ver porque não quer
a guitarra é uma mulher.
Você não ver porque não quer...
Não leve a mal se eu lhe disser
a guitarra é uma mulher.
Não leve a mal...
  
Não leve a mal...
Se eu lhe disser
a guitarra é uma mulher.
Mulher... mulher.

 Erasmo Carlos e Chico Amaral
“Eu me alimentei de leituras ao longo da vida. Já tenho o cérebro mobiliado. Não vou agora mudar os móveis. Hoje em dia os jovens gostam de sentar no chão, não?”.
Carlos Drummond de Andrade

Catar Feijão

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.

João Cabral de Melo Neto
“Quando Helena entrou, diante da visão de sua beleza, os velhos se levantaram”. Imagina-se imediatamente o esplendor dessa beleza. Nenhuma necessidade de descrever seus olhos, sua boca, seus cabelos”.
            Tolstoi relembrando como Homero descreve a beleza de Helena

terça-feira, 26 de abril de 2011

Habeas Corpus



Um pingo de chuva estourou na pedra de gelo do meu whisky
Eu lembrei de ti
Que sempre quer botar o pingo do "i" em ipsiloni
O que é que há?
Parece até que eu sou um livro mal escrito
E que voce é uma caneta cor vermelha
Rasurando o que não aceita e nem consegue decifrar
Outras vezes você tenta feito louca rasgar as minhas páginas
Mal eu esqueço do que lembrei
Você aparece
"Olá"
"Olá coisa nenhuma" é o que me diz
Roubando meu whisky pra falar
Que eu te beijo como Judas beijou Cristo
Pois levo um tempo a imaginar como seria
Com quem e quando eu trairia o que eu jamais jurei te dar
Põe na minha boca palavras que não são minhas
Com a voz trêmula e trágica
E me ameaça quando diz "eu vou embora"
Ora... Vá!
Você tem seu direito de ir e vir
Mas eu também tenho o meu direito de querer ficar
Não precisa de um pedido de Habeas Corpus
A porta esta aberta.
XAU
!


Maurício Baia
“Shakespeare nunca existiu, e eu lamento que haja um nome nas suas peças. O livro de Jó não é de ninguém. E mais: o que faz uma obra não é aquele que lhe põe o nome. O que faz uma obra não tem nome”.
 Paul Valéry 

Da Série: Tem Resposta?*

                Quem foi o poeta e/ou iluminado que sugeriu o topônimo Caiçara do Rio dos Ventos?
*Quem souber, envie-a, por favor, a este perguntador.

Antiguidades

Quando eu era menina
bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.

Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)
Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.

A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo
com importância.
Com atenção. Seriamente.
Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo.

Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.
Minha irmã mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada...
E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais !
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário, alto, fechado,
impossível.

Era aquilo, uma coisa de respeito.
Não pra ser comido
assim, sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.

Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa
usava e abusava
de pretensos direitos
de educação.

Por dá-cá-aquela-palha,
ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas
não faltavam.
Quando não,
sentada no canto de castigo
fazendo trancinhas,
amarrando abrolhos.
"Tomando propósito".
Expressão muito corrente e pedagógica.

Aquela gente antiga,
passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.

Não poupava as crianças.
Mas, as visitas...
- Valha-me Deus !...
As visitas...
Como eram queridas,
recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas !

Era gente superenjoada.
Solene, empertigada.
De velhas conversas
que davam sono.
Antiguidades...

Até os nomes, que não se percam:
D. Aninha com Seu Quinquim.
D. Milécia, sempre às voltas
com receitas de bolo, assuntos
de licores e pudins.
D. Benedita com sua filha Lili.
D. Benedita - alta, magrinha.
Lili - baixota, gordinha.
Puxava de uma perna e fazia crochê.
E, diziam dela línguas viperinas:
"- Lili é a bengala de D. Benedita".
Mestre Quina, D. Luisalves,
Saninha de Bili, Sá Mônica.
Gente do Cônego, Padre Pio.

D. Joaquina Amâncio...
Dessa então me lembro bem.
Era amiga do peito de minha bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades
tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado silêncio.
E só se ia quando o galo cantava.

O pessoal da casa,
como era de bom-tom,
se revezava fazendo sala.
Rendidos de sono, davam o fora.
No fim, só ficava mesmo, firme,
minha bisavó.

D. Joaquina era uma velha
grossa, rombuda, aparatosa.
Esquisita.
Demorona.
Cega de um olho.
Gostava de flores e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro de contado.
Grossas contas de ouro
no pescoço.

Anéis pelos dedos.
Bichas nas orelhas.
Pitava na palha.
Cheirava rapé.
E era de Paracatu.
O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava
contando "causos" infindáveis,
dormia estirado
no banco da varanda.
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa
do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia,
vencida pelo sono já dormia.
E sonhava com o imenso armário
cheio de grandes bolos
ao meu alcance.

De manhã cedo
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
- ai de mim -
via com tristeza,
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo,
e um cheiro enjoado de rapé.

Cora Coralina
             “Acontece-me pensar na morte. Posso facilmente crer na desintegração do corpo, mas não posso crer que tudo que aprendi, experimentei, acumulei, possa desaparecer e ser perdido”.
                                                        Anaïs Nin  

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Aberto para Balanço

No dia 25 de março de 2011 foi criado este blog. Hoje, um mês após, devo destacar diversos aspectos: todo dia posto “pílulas”, isto é, diariamente o Rapadura Cult é atualizado com os pensamentos, aforismos, axiomas, máximas, versos e trechos de obras de grandes nomes da literatura universal como Montesquieu, Goethe, Tchekov, Paul Valéry, Sêneca, Machado de Assis, Franz Kafka e Stendhal.
Mas não me esqueci dos autores nacionais, regionais e, evidente, os locais, pois bem asseverou Tolstoi: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”.
Deixei de lado a conotação muito pessoal que a maioria dos blogs tem. Tento imprimir no subjetivo uma visão mais ampla. Daí, quando em temas controversos, como a religião e a política, externo-os a partir da visão desses renomados pensadores, com quem eu comungo. E não é necessário acrescentar sequer uma linha de caráter pessoal.
Os entraves e incompreensões são colossais, de se admirar, até. No entanto, a renúncia e a ousadia são necessárias para fazer fomentar e divulgar a Arte e a Cultura, seja aqui, em Santo Antônio do Salto da Onça ou no Rio de Janeiro.
Outrossim, em vez de abrir links para que leiam na íntegra em outro sítio ou blog, procuro reproduzir o texto/matéria; também, premeditadamente, não costumo ser biográfico: se alguém gostar, que se aprofunde no autor em questão. 
Façam o Rapadura Cult melhor: enviem-me, por favor, sugestões e colaborações e, claro, recomendando este blog, que já postou mais de 163 matérias nesses incipientes 30 dias.
Agradeço aos que acessam esporadicamente o blog – mais de 1000 visualizações em um mês!! – e aos meus já 30 seguidores, bem como a Cia. Pão Doce de Teatro, de Mossoró, e o Substantivo Plural, de Natal, blog e site que recomendam em link o Rapadura Cult.

No caminho, com Maiakovski

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de me quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas manhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!

Eduardo Alves da Costa