terça-feira, 23 de abril de 2024

Cuca Roseta e Seu Jorge | Até a Fé Se Esqueceu

Poema de desintoxicação

Em densas noites
com medo de tudo:
de um anjo que é cego
de um anjo que é mudo.
Raízes de árvores
enlaçam-me os sonhos
no ar sem aves
vagando tristonhos.
Eu penso o poema
da face sonhada,
metade de flor
metade apagada.
O poema inquieta
o papel e a sala.
Ante a face sonhada
o vazio se cala.
Ó face sonhada
de um silêncio de lua,
na noite da lâmpada
pressinto a tua.
Ó nascidas manhãs
que uma fada vai rindo,
sou o vulto longínquo
de um homem dormindo.

João Cabral de Melo Neto, in Pedra do Sono

Capítulo 131 – De Uma Calúnia

Como eu acabava de dizer aquilo, pelo processo ventríloco-cerebral, – o que era simples opinião e não remorso,  senti que alguém me punha a mão no ombro. Voltei-me; era um antigo companheiro, oficial de marinha, jovial, um pouco despejado de maneiras. Ele sorriu maliciosamente, e disse-me:
Seu maganão! Recordações do passado, hem?
Viva o passado!
Você naturalmente foi reintegrado no emprego.
Salta, pelintra! disse eu, ameaçando-o com o dedo.
Confesso que este diálogo era uma indiscrição, – principalmente a última réplica. E com tanto maior prazer o confesso, quanto que as mulheres é que têm fama de indiscretas, e não quero acabar o livro sem retificar essa noção do espírito humano. Em pontos de aventura amorosa, achei homens que sorriam; ou negavam a custo, de um modo frio, monossilábico, etc., ao passo que as parceiras não davam por si, e jurariam aos Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia. A razão desta diferença é que a mulher (salva a hipótese do capítulo 101 e outras) entrega-se por amor, ou seja o amor-paixão de Stendhal, ou o puramente físico de algumas damas romanas, por exemplo, ou polinésias, lapônias, cafres, e pode ser que outras raças civilizadas; mas o homem, – falo do homem de uma sociedade culta e elegante – o homem conjuga a sua vaidade ao outro sentimento. Além disso (e refiro-me sempre aos casos defesos), a mulher, quando ama outro homem, parece-lhe que mente a um dever, e portanto tem de dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o homem, sentindo-se causa da infração e vencedor de outro homem, fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos ríspido e menos secreto, – essa meiga fatuidade que é a transpiração luminosa do mérito.
Mas seja ou não verdadeira a minha explicação, basta-me deixar escrito nesta página, para uso dos óculos, que a indiscrição das mulheres é uma burla inventada pelos homens; em amor, pelo menos, elas são um verdadeiro sepulcro. Perdem-se muita vez por desastradas, por inquietas, por não saberem resistir aos gestos, aos olhares; e é por isso que uma grande dama e fino espírito, a rainha de Navarra, empregou algures esta metáfora para dizer que toda a aventura amorosa vinha a descobrir-se por força, mais tarde ou mais cedo: “Não há cachorrinho tão adestrado, que alfim lhe não ouçamos o latir.”

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

Helga

Intenções

Os que andam com segundas intenções não conseguem enganar ninguém. Está na cara... O perigo mesmo — porque é invisível — está nos que têm terceiras intenções.

Mário Quintana, in Porta giratória

Parte IV | 2.


Na entrada do ranário, um guarda afetado bateu continência ao carro do meu primo, parecia ridículo. O portão elétrico se abriu lentamente e o Passat do meu primo entrou devagar. Yuan Bochecha, outrora adivinho e curandeiro, hoje presidente Yuan da Companhia Geral de Criação de Rãs-Touro, já nos aguardava ao pé de uma escultura pretíssima.
Era a estátua de uma rã-touro.
De longe, parecia um veículo blindado de transporte de pessoal.
No revestimento de mármore do pedestal, lia-se: “Rã-touro (Rana catesbeiana), Amphibia, Anura, Ranidae, Rana: produz coaxos sonoros semelhantes ao mugido de um touro, daí seu nome popular”.
Vamos tirar fotos”, sugeriu Yuan Bochecha, “primeiro as fotos, depois a visita e, por fim, o almoço.”
A visão daquela rã colossal me inspirou um temor reverente. Via-se um dorso negro, a boca verde-musgo, cor de ouro no contorno dos olhos. A pele tinha a textura das algas, com verrugas aqui e ali. Aquele par de olhos salientes, sombrios, parecia me trazer notícias de um passado distante.
Jovem Bi! Traga a câmera!”, gritou meu primo.
Uma moça magra de óculos vermelhos e vestido xadrez colorido veio correndo com uma pesada máquina fotográfica.
Jovem Bi é formada em artes pela Universidade Qidong e nossa diretora administrativa”, meu primo disse, nos apresentando a moça.
Além de bonita, é talentosa”, acrescentou Yuan Bochecha. “Ela entende de tudo: canta, dança, tira fotos, faz esculturas. E ainda sabe beber!”
Estou lisonjeada, presidente Yuan”, disse Jovem Bi, corando.
Este meu velho colega de escola também é uma figura importante. Quando menino, era bom na corrida, todo mundo achava que seria campeão mundial, ninguém imaginava que se tornaria dramaturgo.” Yuan Bochecha me apresentou à moça: “Nome oficial: Wan Perna, apelido de infância: Corre Corre, hoje conhecido como Girino”.
Girino é meu pseudônimo literário”, expliquei.
Esta é a esposa do professor Girino, Leoazinha, ginecologista”, disse meu primo, apontando para minha mulher.
Leoazinha, que segurava o boneco de barro, acenou com a cabeça, meio distraída.
O sr. Yuan e o sr. Jin me falaram muito do senhor”, disse Jovem Bi.
A rã número 1 do mundo!”, disse Bochecha. “Esta escultura é da autoria de Jovem Bi”, contou meu primo.
Soltei uma exclamação um tanto exagerada.
Sua crítica terá grande valor para mim, professor Girino.”
Demos a volta em torno da escultura. Fosse qual fosse a minha posição, sentia que aqueles olhos enormes e sombrios podiam me seguir, que estavam olhando para mim.
Terminada a sessão de fotos, fomos com Bochecha, meu primo e Jovem Bi conhecer os viveiros de reprodução, de girinos, de metamorfose e de rãs jovens, assim como as oficinas de processamento de ração e de beneficiamento de produtos ranícolas, nessa ordem.
Depois daquela visita, sonhei muitas vezes com o viveiro de reprodução. É um tanque de aproximadamente quarenta metros quadrados, com mais ou menos meio metro de água turva. Na superfície, os machos, inflando seus papos brancos, emitem um mugido de boi para atrair as fêmeas, e elas, flutuando com as pernas esticadas, vão se aproximando devagar do parceiro. Cada vez mais pares se formam. A fêmea nada com o macho nas costas; o macho usa as patas anteriores para segurar a fêmea e as posteriores para golpear a barriga dela. Massas de ovos transparentes são excretadas pela abertura genital enquanto o macho despeja na água um sêmen transparente — a rã faz fertilização externa —, foi meu primo, ou Bochecha talvez, que explicou — as fêmeas podem eliminar de oito a dez mil ovos por vez, são muito mais capazes que o ser humano. No tanque, o coaxar soa aqui e acolá, a água aquecida pelo sol de abril exala um odor nauseante. É o espaço do romance, da busca de parceiros, mas também o espaço da procriação, da produção de descendência. “Para que as fêmeas liberem mais ovos, colocamos na ração um aditivo que estimula a ovulação.” Coac, coac, coac — buá, buá, buá…
Com os ouvidos cheios de coaxos e a cabeça cheia de rãs, fomos levados a um restaurante com decoração luxuosa.
Duas garçonetes de uniforme rosa nos serviram chá, trouxeram a comida, encheram as taças.
O banquete hoje é só de rãs”, disse Yuan Bochecha.
Dei uma olhada no menu sobre a mesa, que listava: pernas de rã ao sal e pimenta, pele de rã frita, iscas de rã com pimentão, fatias de rã com broto de bambu, girinos ao vinagrete, sopa de ovos de rã com sagu…
Vão me desculpar, mas não como rãs”, eu disse.
Nem eu”, disse Leoazinha.
Mas por quê?”, estranhou Yuan Bochecha, “é uma delícia, por que não experimentam?”
Fiz um esforço para esquecer os olhos esbugalhados, a pele pegajosa, o cheiro desagradável que se desprende de seu corpo, em vão. Balancei a cabeça, angustiado.
Recentemente cientistas sul-coreanos extraíram da pele da rã-touro um peptídeo valiosíssimo, com propriedades antioxidantes, que elimina os radicais livres no corpo humano e age como retardador natural do envelhecimento. E, claro, ainda tem outras propriedades secretas”, disse meu primo Jin Xiu com ar de mistério. “Sobretudo consegue aumentar substancialmente a probabilidade de nascimentos múltiplos.”
Não querem provar um pouco?”, perguntou Yuan Bochecha. “Precisa ser mais ousado! Já teve coragem de comer escorpião, sanguessuga, minhoca e cobra peçonhenta, vai deixar de comer rã-touro?”
Você se esqueceu? Meu pseudônimo é Girino!”
Pois bem! Então retirem todos os pratos da mesa. Mandem a cozinha preparar outros pratos, não façam nada que tenha a ver com rã!”, ordenou Bochecha às garçonetes.
Trouxeram novos pratos à mesa, serviram mais de três rodadas de bebida.
Como você teve a ideia de criar rãs-touro?”, perguntei a Bochecha.
Para fazer fortuna, você precisa pensar em coisas que os outros não pensam!”, disse Bochecha, orgulhoso, enquanto soltava anéis de fumaça.
Mas que talento o seu, hein? Desde menino sempre foi diferente”, falei com algum sarcasmo, imitando a entonação de um conhecido comediante. “Não vejo problema em criar rã-touro, mas não seria um desperdício abandonar as maravilhosas técnicas de retirar prego de bucho de boi e ler a sorte das pessoas na feira?”
Girino, seu patife, você nunca ouviu falar em não bater na cara dos outros e não revelar defeitos alheios?”, protestou Bochecha.
E também tirava DIU com um gancho de ferro”, lembrou Leoazinha friamente.
Ora, minha irmã, isso jamais deve ser lembrado”, disse Bochecha. “Naquele tempo, em primeiro lugar, eu não sabia de nada, em segundo, tinha coração mole e não resistia à insistência daquela mulherada louca para ter filho homem e, terceiro, era a pobreza que me forçava.”
Agora ainda teria coragem de fazer?”, perguntei.
Fazer o quê?”, questionou ele de olhos arregalados.
Tirar DIU!”
Mas que conversa é essa? Acha que tenho memória tão curta? Depois de anos de trabalho forçado, sou um homem refeito”, disse Bochecha, “agora sou um homem digno e ganho meu dinheiro à luz do dia. Faço tudo e qualquer coisa desde que não viole a lei. Não mexo com coisas ilegais nem com uma arma na cabeça.”
Somos uma empresa bem conceituada no município, cumprimos as leis, pagamos os impostos e trabalhamos para o bem público”, explicou meu primo.
Leoazinha não largou o boneco de barro durante toda a refeição.
Qin He, aquele filho da mãe, é que é um gênio de verdade!”, disse Bochecha. “Nunca fazia nada, mas foi só pôr a mão na massa que logo superou Hao Mão Grande.”
Cada obra do mestre Qin cristaliza seu sentimento”, interveio Jovem Bi, que até então só sorria sem dizer nada.
Para moldar bonecos também precisa de sentimentos?”, perguntou Bochecha.
Claro que sim”, respondeu ela. “Cada obra de sucesso é um bebê do artista.”
Então aquela rã-touro também é seu bebê?” Bochecha apontou para a estátua no pátio.
Jovem Bi ficou corada e parou de falar.
Você gosta tanto de bonecos de barro, prima?”, perguntou meu primo.
Não é do boneco de barro que ela gosta, mas de bebês de verdade”, respondeu Bochecha.
Que tal trabalharmos juntos? Você pode ser nosso sócio também”, meu primo disse, animado.
Quer que a gente crie rã-touro com vocês?”, perguntei. “Tenho calafrios só de olhar para esses bichos.”
Mas, primo, não criamos só rã-touro, também…”
Não assuste seu primo”, interrompeu Bochecha, “vamos beber! Meu irmão, ainda se lembra de como o presidente Mao educou a ‘juventude instruída’? O campo é um mundo vasto no qual poderão desenvolver plenamente suas potencialidades!”

Mo Yan, in As rãs

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Jacob Collier | Here Comes The Sun (feat. dodie)

Menino do mato | I

Eu queria usar palavras de ave para escrever.
Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem
nomeação.
Ali a gente brincava de brincar com palavras
tipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!
A Mãe que ouvira a brincadeira falou:
Já vem você com suas visões!
Porque formigas nem têm joelhos ajoelháveis
e nem há pedras de sacristias por aqui.
Isso é traquinagem da sua imaginação.
O menino tinha no olhar um silêncio de chão
e na sua voz uma candura de Fontes.
O Pai achava que a gente queria desver o mundo
para encontrar nas palavras novas coisas de ver
assim: eu via a manhã pousada sobre as margens do
rio do mesmo modo que uma garça aberta na solidão
de uma pedra.
Eram novidades que os meninos criavam com as suas
palavras.
Assim Bernardo emendou nova criação: Eu hoje vi um
sapo com olhar de árvore.
Então era preciso desver o mundo para sair daquele
lugar imensamente e sem lado.
A gente queria encontrar imagens de aves abençoadas
pela inocência.
O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias
para a gente bem entender a voz das águas e
dos caracóis.
A gente gostava das palavras quando elas perturbavam
o sentido normal das ideias.
Porque a gente também sabia que só os absurdos
enriquecem a poesia.

Manoel de Barros, in Menino do mato

Notas de um velho safado


Em Philly, o último banco era meu e eu ficava ali pedindo sanduíches e outras coisas mais. Jim, o garçom da manhã, me deixava entrar às 5h30 enquanto ele esfregava o chão e eu bebia alguns drinques até que a multidão chegava às 7h. eu fechava o bar às 2h, o que não me deixava muito tempo para dormir. mas eu não tava fazendo muito naqueles dias – dormia, comia, ou qualquer outra coisa. o bar era tão velho, baleado, fedendo a urina e a morte que quando uma puta entrava pra dar um atraque nós ficávamos particularmente lisonjeados. como eu pagava o aluguel do meu quarto ou o que estava pensando não estou bem certo. por essa época um conto meu apareceu em Portfolio III, junto com Henry Miller, Lorca, Sartre e muitos outros. o Portfolio era vendido por $10. uma coisa enorme com páginas em separado, cada uma impressa com tipos diferentes em papel fino e colorido e gravuras feitas com cuidado. Caresse Crosby, a editora, escreveu-me: “uma história incrível e maravilhosa. quem É você?” e eu respondi, “Prezada Sra. Crosby: eu não sei quem sou. sinceramente seu, Charles Bukowski”. foi logo depois disso que eu desisti de escrever por dez anos. mas primeiro, uma noite na chuva com o Portfolio, um vento fortíssimo, as páginas voando rua abaixo, pessoas correndo atrás delas, eu mesmo parado bêbado olhando; um enorme lavador de janelas que sempre comia seis ovos no café da manhã coloca um pé enorme no centro de uma das páginas: “aí! ei! peguei uma!” “foda-se, pode deixar, deixa que todas as páginas se vão!”, disse a eles, e voltamos para dentro. eu ganhara uma espécie de aposta. era o suficiente.
por volta das 11h, todas as manhãs, Jim me dizia que eu já tivera o suficiente, que eu tava chumbado, que fosse dar uma volta. eu dava uma volta até os fundos do bar e me deitava num beco que havia por lá. gostava de fazer isso porque caminhões subiam e desciam aquele beco e eu sentia que qualquer momento poderia ser o meu. mas eu não tava com muita sorte. e todos os dias essas criancinhas negras vinham me espetar as costas, e então eu ouvia a voz da mãe, “agora já chega, já chega, deixem esse homem em paz!”. passava um tempo e eu me levantava, voltava pra dentro e continuava bebendo. o limo no beco é que era o problema. alguém sempre escovava o limo de mim e já fazia muito.
eu tava sentado lá um dia quando perguntei a alguém, “por que ninguém nunca vai naquele bar no fim da rua?” e me disseram, “aquilo lá é bar de bandido. entrou lá, tá morto”. terminei o meu drinque, me levantei e fui caminhando até lá. era bem mais limpo naquele bar. cheio de garotões sentados por ali, meio mal-encarados. fez-se um grande silêncio. “vou querer um scotch com água”, disse ao garçom.
ele fingiu não ter escutado.
levantei um pouco o volume: “garçom, eu disse que queria um scotch com água!”
ele esperou durante um longo tempo, aí então virou-se, aproximou-se com uma garrafa e me serviu. virei de uma só vez.“
agora vou tomar outra dose.”
percebi uma jovem sentada sozinha. parecia estar só. parecia gostosa, gostosa e sozinha. eu tinha algum dinheiro. não me lembro onde arranjei o dinheiro. peguei o meu drinque e fui até lá e me sentei ao seu lado.
o que que você gostaria de ouvir na jukebox?”
qualquer coisa. o que você estiver a fim.”
liguei a coisa. eu não sabia quem eu era mas podia operar uma jukebox. ela parecia gostosa. como é que podia parecer tão gostosa e estar sentada sozinha?
garçom! garçom! mais 2 drinques! um pra moça e outro pra mim!”
eu podia sentir o cheiro de morte no ar. e agora que o senti não estava tão certo se estava cheirando bem ou não.
o que que cê tem doçura? fala pro homem!”
ficamos bebendo por mais ou menos uma meia hora quando um dos dois garotões sentados no fundo do bar se levantou e caminhou lentamente até onde eu me encontrava. ele se parou de costas e se inclinou. ela tinha ido ao banheiro.
escuta, faixa, eu quero te DIZER uma coisa.”
vai em frente. é um prazer.”
essa é a garota do chefe. continua mexendo com ela e você vai acabar morto.”
foi o que ele disse: “morto”. era exatamente como no cinema. ele voltou-se e sentou-se. ela saiu do banheiro e sentou-se perto de mim.
garçom”, disse, “mais dois drinques.”
continuei tocando ficha na jukebox e conversando. aí eu tive que ir ao banheiro. eu fui aonde dizia HOMENS e notei que havia uma longa escada para baixo. eles tinham o banheiro dos homens lá embaixo. que estranho. desci os primeiros degraus e então percebi que estava sendo seguido pelos dois garotões que estavam no fundo do bar. não foi tanto o medo da coisa quanto a sua estranheza. não havia nada que eu pudesse fazer a não ser continuar descendo os degraus. caminhei até o mictório, abri o fecho e comecei a mijar. vagamente bêbado, enxerguei o canecão descendo. movimentei a cabeça levemente para o lado e ao invés de recebê-lo do lado da orelha recebi-o na parte de trás da cabeça. as luzes começaram a brilhar e a girar mas não foi tão ruim. terminei de mijar, coloquei ele de volta e fechei o zíper. dei meia volta. eles estavam parados ali, esperando que eu caísse. “me desculpem”, disse e em seguida passei entre eles e subi os degraus e me sentei. tinha esquecido de lavar as mãos.
garçom”, disse, “mais dois drinques.”
o sangue estava escorrendo. peguei o meu lenço e fiquei segurando ele atrás da minha cabeça. aí os dois garotões saíram do banheiro e se sentaram.
garçom”, fiz um sinal com a cabeça na direção deles, “dois drinques para os cavalheiros lá.”
mais caixa de música, mais conversa. a garota não se afastara de perto de mim. eu não entendia a maioria das coisas que ela estava dizendo. aí então tive que mijar de novo. levantei-me e fui no reservado dos HOMENS novamente. um dos garotões disse para o outro enquanto eu passava, “você não pode matar um filho da puta desses. ele é maluco”.
eles não desceram de novo, mas quando subi de volta não me sentei novamente do lado da garota. eu já tinha provado alguma espécie de questão e não estava mais interessado. bebi ali o resto da noite e quando o bar fechou todos nós fomos pra fora e falamos e rimos e cantamos. fiquei bebendo com um garoto de cabelo preto nas últimas horas. ele veio até mim: “escuta, nós queremos tu na gangue. tu tem culhão. nós precisamos de um cara como tu”.
obrigado, companheiro. aprecio muito o seu convite mas não posso. obrigado de qualquer forma.”
em seguida me afastei. sempre o velho senso dramático.
gritei prum carro de polícia alguns quarteirões abaixo, contei a eles que tinha sido agredido com um canecão de cerveja e assaltado por dois marinheiros. eles me levaram para a emergência e me sentei sob uma luz elétrica brilhante com um doutor e uma enfermeira. “agora isso vai doer”, ele me disse. a agulha começou a trabalhar. eu não podia sentir coisa alguma. me sentia como se todos inclusive eu estivessem sob o meu controle. estavam colocando alguma espécie de atadura em mim quando me estiquei e agarrei a perna da enfermeira. apertei o joelho dela com força. isso fez bem pra mim.
ei! que diabo está acontecendo com você?”
nada! tava só brincando”, disse pro doutor.
o senhor quer que a gente prenda esse sujeito?”, perguntou um dos tiras.
não, levem ele pra casa. ele teve uma noite difícil.”
os tiras me levaram pra casa. foi um bom serviço. se fosse em L.A. eu teria sido engaiolado. quando cheguei no meu quarto bebi uma garrafa de vinho e fui dormir.
não consegui cumprir o horário das 5h30 da manhã abrindo no velho bar. eu às vezes fazia isso. às vezes ficava na cama o dia inteiro. por volta das duas da tarde escutei algumas mulheres falando do lado de fora da janela. “não sei não sobre aquele novo inquilino. às vezes só fica no quarto o dia inteiro com as persianas abaixadas, só ouvindo rádio. isso é tudo o que faz.”
eu já vi ele”, disse a outra, “bêbado a maior parte do tempo, um homem horrível.”
acho que eu vou ter que pedir pra ele sair”, disse a primeira.
ah, merda, pensei. ah, merda, merda merda merda merda.
desliguei o Strawinski, vesti a roupa e caminhei até o bar lá embaixo. Entrei.
ei, olha quem tá aí!!!”
pensamos que tinham matado você!”
você chegou a ir naquele bar de bandido?”
só.”
então conta pra gente como é que ele é.”
preciso de um trago primeiro.”
claro, claro.”
o scotch e a água chegaram. sentei-me no último banco. o brilho sujo do sol entre a l6a e a Fairmount deu um jeito de entrar. meu dia havia começado.
os rumores”, comecei, “sobre ele ser muito barra-pesada são definitivamente verdadeiros...” então contei a eles grosso modo a mesma coisa que contei pra vocês.
o resto da história é que não pude pentear o cabelo por dois meses, retornei ao bar dos bandidos uma ou duas vezes mais, fui bem tratado e deixei Philly não muito tempo depois procurando por mais encrenca ou seja lá o que eu estava procurando. encrenca eu encontrei, mas o restante do que estava procurando ainda não encontrei. talvez nós encontremos quando morremos. talvez não. vocês têm seus livros de filosofia, seu padre, seu pregador, seu cientista, portanto não me perguntem. e fiquem longe de bares com o banheiro dos HOMENS no final da escada.

Charles Bukowski, in Sobre bêbados e bebidas

Protocolo, por João Montanaro

Cuidado!

Tome cuidado para não sentir pelos desumanos o que eles sentem pelos humanos.

Marco Aurélio, in Meditações

O senhor mal conhece esta gente sertaneja



[…]

Naquela hora, o senhor reparasse, que é que notava? Nada, mesmo. O senhor mal conhece esta gente sertaneja. Em tudo, eles gostam de alguma demora. Por mim, vi! assim serenados assim, os cabras estavam desejando querendo o sério divertimento. Mas, os chefes cabecilhas, esses, ao que menos! expunham um certo se aborrecer, segundo seja? Cada um conspirava suas ideias a respeito do prosseguir, e cumpriam seus manejos no geral, esses com suas responsabilidades. Uns descombinavam dos outros, no sutil. Eles pensavam. Conforme vi. Sô Candelário duma banda de Joca Ramiro, com Titão Passos e João Goanhá; o Ricardão da outra, com o Hermógenes. Atual Zé Bebelo foi começando a conversar comprido, na taramelagem como de seu gosto ― aí o Ricardão armou um bocêjo; e Titão Passos se desacocorou, com a mão num ombro, que devia de ter algum machucado. O Hermógenes fez beiço. João Goanhá, aquele ar sonsado, quase de tolo, no grosso do semblante. O Hermógenes botava pontas de olhar, some escuro, nuns visos. Só Candelário, ficado em pé, sacudia o moroso das pernas.
Joca Ramiro deve de ter percebido aquele repiquete. Porque ele sobre se virou, para Só Candelário, ao de indagar:
Meu compadre, que é que se acha?
Só Candelário fungou, e logo abriu naqueles sestros que tinha, movimental. Sendo por ele querer se desengonçar e não podendo: como era alto e magro duro aquele homem! Sarre os onhos olhos amarelos de gavião, dele, hem. Não achou as palavras para dizer, disse:
Ao que a ver! Ao que estou, compadre chefe meu...
A lesto que Joca Ramiro assentiu, com cabeça, conforme se Só Candelário tivesse afirmado coisas de sincera importância. Zé Bebelo abriu muito a boca, tirando um ronco, como que de propósito. Alguns, mais riram dele.
Em menos Joca Ramiro esperou um instante:
A gente pode principiar a acusação.
Aprovaram, os todos, todos. Até Zé Bebelo mesmo. Assim Joca Ramiro refalou, normal, seguro de sua estança, por mais se impor, uma fala que ele drede avagarava. Dito disse que ali, sumetido diante, só estava um inimigo vencido em combates, e que agora ia receber continuação de seu destino. Julgamento, já. Ele mesmo, Joca Ramiro, como de lei, deixava para dar opinião no fim, baixar sentença. Agora, quem quisesse, podia referir acusação, dos crimes que houvesse, de todas as ações de Zé Bebelo, seus motivos: e propor condena.
Rés o que começasse, quem? O Hermógenes limpou a goela. De primeira entrada eu vinha sabendo ― esse Hermógenes precisava de muitas vinganças.
Ele era sujeito vindo saindo de brejos, pedras e cachoeiras, homem todo cruzado. De uns assim, tudo o que escapa vai em retinge de medo ou de ódio. Observei, digo ao senhor. Carece de não se perder sempre o vezo da cara do outro; os olhos. Advertido que pensei! e se eu puxasse meu revólver, berrasse fogo nele? Se acabava um Hermógenes ― estava ali, são no vão, e num átimo se via era papas de sangue ― ele voltava para o inferno! Que era que me acontecia? Eu tomava castigo mortal, de mão de todos? Deixasse que tomasse. Medo não tive. Só que a ideia boa passou muito fraca por mim, entrada por saída. Fiquei foi querendo ouvir e ver, o que vinha mais. Demarcava que iam acontecendo grandes fatos. Desde, Diadorim, conseguindo caminho por entre o povo, aí chegou, se encostou em mim; tão junto, mesmo sem conversar, mas respirava, como era com a boca tão cheirosa. Há-de haja! ― o Hermógenes tinha levantado, para falar!
Acusação, que a gente acha, é que se devia de amarrar este cujo, feito porco. O sangrante... Ou então botar atravessado no chão, a gente todos passava a cavalo por riba dele ― a ver se vida sobrava, para não sobrar!
Quá?! ― Zé Bebelo debicou, esticando o pescoço e batendo com a cabeça para diante, diversas vezes, feito pica-pau em seu ofício em árvore. Mas o Hermógenes com aquilo não somou; foi pondo!
Cachorro que é, bom para a faca. O tanto que ninguém não provocou, não era inimigo nosso, não se buliu com ele. Assaz que veio, por si, para matar, para arrasar, com sobejidão de cacundeiros. Dele é este Norte? Veio a pago do Governo. Mais cachorro que os soldados mesmos... Merece ter vida não. Acuso é isto, acusação de morte. O diacho, cão!
Ih! Arre! ― foi o que Zé Bebelo ponteou. Assim contracenando, todo o tempo ― medo do Hermógenes remedou, de feias caretas.
E o que eu acho! E o que eu acho! ― o Hermógenes então quase gritou, por terminar ― Sujeito que é um tralha!
Posso dar uma resposta, Chefe? ― Zé Bebelo perguntou, sério, a Joca Ramiro. Joca Ramiro concedeu.
Mas, para falar, careço que não me deixem com as mãos amarradas...
Nisso não havendo razão ou dúvida. E Joca Ramiro deu ordem. João Frio, que de perto dele não se apartava, veio de lá, cortou e desatou a manupeia nas juntas dos pulsos. Que era que Zé Bebelo ia poder fazer? Isto:
Praqui mais praqui, por este mais este cotovelo!... ― disse, batendo mão e mão, com o acionado de desplante. E riu chiou feito um sõim, o caretejo. Parecia mesmo querer fazer raiva no outro, em vez de tomar cautela? Vi que tudo era enfinta; mas podia dar em mal. O Hermógenes pulou passo, fez menção de reluzir faca. Se teve mão em si, foi por forte costume. E Joca Ramiro também tinha atalhado, com uma aspação: ― Tento e paz, compadre mano-velho. Não vê que ele ainda está é azuretado...
Ei! Com seu respeito, discordo, Chefe, maximé! ― Zé Bebelo falou. ― Retenho que estou frio em juízo legal, raciocínios. Reajo é com protesto. Rompo embargos! Porque acusação tem de ser em sensatas palavras ― não é com afrontas de ofensa de insulto... ― Encarou o Hermógenes: ― Homem: não abusa homem! Não alarga a voz!...
Mas o Hermógenes, arriçado, crível que estivesse todo no poder bravo de uma coceira, falou para Joca Ramiro ― e para todos que estávamos lá ― falou, numa voz rachada em duas, voz torta entortada!
Tibes trapo, o desgraçado desse canalha, que me agravou! Me agravou, mesmo estando assim vencido nosso e preso... Meu direito é acabar com ele, Chefe!
Vi a mão do perigo. Muitos homens resmungaram em aprôvo, ali rodeando, os tantos, dez ou vinte círculos, anéis de gente. Rentes os do bando do Hermógenes chegaram a dar altas palavras, de calca pá. Questionou-se a respeito disso? Tinham barulhos na voz. Mesmo os chefes entre si cochicharam. Mas Joca Ramiro sabia represar os excessos, Joca Ramiro era mesmo o tutumumbuca, grande maioral. Temperou somente!
Mas ele não falou o nome-da-mãe, amigo...
E era verdade. Todo o mundo concordou, pelo que vi de todos. Só para o nome-da-mãe ou de ladrão era que não havia remédio, por ser a ofensa grave. Com Joca Ramiro explicar assim, não havia jagunço que não aceitasse o razoável da ponderação, o relembrado. O Hermógenes mesmo se melou na atrapalhação das ligeirezas, e aí tinha de condizer. Nada ele não disse! mas abriu quadrada a boca, em careta de quem provou pedra de sal. E Zé Bebelo mesmo aproveitou para mudar o aspecto ― para uma certa circunspecção. Se via que ele pensava a curto ganho no estreito, por detrás daquele sonsar. Trabalho de ideia em aperto, pelo pão de salvar sua vida da estrosca.
Imediato, Joca Ramiro deu a vez a Sô Candelário, não deixando frouxura de tempo para mais motim! ― Hê, e você, compadre? Qual é a acusação que se tem?
Sobre o que, sobreveio Sô Candelário, arre avante, aos priscos, a figura muita, o gibão desombrado. Sobrava fala! ― Com efeito! Com efeito!... ― falou. Vai, vai, forteou mais a voz! ― Só quero pergunta! se ele convém em nós dois resolvermos isto à faca! Pergunto para briga de duelo... E o que acho! Carece mais de discussão não... Zé Bebelo e eu ― nós dois, na faca!…
Só Candelário mais longe não conseguia de dizer, só repetia aquilo, desafio, e no mais se mexer, feito com são-guido ou escaravelho. Sem raiva quase nenhuma ― notei; mas também sem nenhuma paciência. Só Candelário sendo assim. Mas aí Joca Ramiro remediou, dizendo, resistencioso, e escondeu o de que ria:
Resultado e condena, a gente deixa para o fim, compadre. Demore, que logo vai ver. Agora é a acusação das culpas. Que crimes o compadre indica neste homem?
Crime?... Crime não vejo. E o que acho, por mim é o que declaro: com a opinião dos outros não me assopro. Que crime? Veio guerrear, como nós também. Perdeu, pronto! A gente não é jagunços? A pois: jagunço com jagunço ― aos peitos, papos. Isso é crime? Perdeu, está aí feito umbuzeiro que boi comeu por metade... Mas brigou valente, mereceu... Crime, que sei, é fazer traição, ser ladrão de cavalos ou de gado... não cumprir a palavra...
Sempre eu cumpro a palavra dada! ― gritou de lá Zé Bebelo.
Só Candelário olhou encarado para ele, rente repente, como se nos instantes antes não soubesse que ele estava ali a três passos. Só assim mesmo prosseguiu:
...Pois, sendo assim, o que acho é que se deve de tornar a soltar este homem, com a compromisso de ir ajuntar outra vez seu pessoal dele e voltar aqui no Norte, para a guerra poder continuar mais, perfeita, diversificada…
Ressaltados, os homens, ouvindo isso, rosnaram de bem, cá e lá: coragem sempre agradava. Diadorim apertou meu braço, como sussurrou: ― Doideira, dele. Riobaldo, Só Candelário está doido varrido... Aí podia ser. Mas eu tinha relanceado um afio de onde ódio que ele mirou no Hermógenes, enquanto falando; e entendi! Sô Candelário não gostava do Hermógenes! Sendo que ele podia até nem saber disso, não ter noção firme de que não gostava; mas era a maior verdade. Sucinto, só por conta disso, eu apreciei demais aquele rompante.
Sô Candelário esbarrou de falar, secado. Só aos bufos, surdo de se ver que ele tinha feito o grande esforço todo, sopitante. Se afundava para os altos.
Apraz ao senhor, compadre Ricardão? ― Joca Ramiro solicitou, passando a vez.
[…]

Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

domingo, 21 de abril de 2024

Emílio Santiago | Perfume siamês

A implosão da mentira | 1


Mentiram-me.
Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.
Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.
Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.

Affonso Romano de Sant’Anna, in A implosão da mentira e outros poemas

Bicudinho, de Caco Galhardo

Lavoisier explicou melhor

A perecibilidade das coisas e dos entes. Mas a perecibilidade das coisas existentes, sendo substituída por outras perecíveis que são substituídas pela perecibilidade de outras – a essa constância se pode, querendo, chamar de perecibilidade eterna: que é a eternidade ao alcance de nós. Mas Lavoisier explicou melhor.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

O vento sul noturno que varria o litoral


É lógico que Abbey Hanley nunca teve a intenção de destruí-lo.
Foi só uma dessas coisas da vida.
Mas uma coisa dessas acaba virando outras, que incorrem em mais coincidências, que, por sua vez, muitos anos depois, incorrem em garotos e cozinhas, garotos e ódio — e, sem aquela menina perdida tanto tempo antes, não teria havido nada:
Nem Penélope.
Nem garotos Dunbar.
Nem ponte, nem Clay.

***

Tantos anos antes, tudo era claro e lindo para Michael e Abbey.
Ele a amava com linhas e cores.
Ele a amava mais do que a Michelangelo.
Ele a amava mais do que a Davi e outras estátuas de escravos extenuados.
Tanto ele quanto Abbey se formaram na escola com boas notas, boas o suficiente para a cidade grande, números de fuga e de deslumbramento.
Ele até ganhou um ou outro tapinha nas costas.
Alguns parabéns.
Mas, de vez em quando, ele também era alvo de um leve desprezo, como se não entendessem por que teria vontade de ir embora dali. Essa era uma especialidade dos homens, sobretudo os mais velhos, o rosto curtido, um dos olhos sempre cerrado contra o sol. Os comentários eram bem tendenciosos:
Então você vai pra cidade grande, é?
Sim, senhor.
Senhor? Que porra é essa? Você ainda nem se mudou!
Cacete, desculpa...
Tudo bem, mas vê se não deixa eles te transformarem em um cuzão, ouviu?
Como?
Você me ouviu muito bem... Não deixa eles mudarem você, como acontece com todo filho da puta que vai embora daqui. Nunca se esqueça de onde veio, sacou?
Tá.
Ou do que você é.
Tá.
Bom, Michael Dunbar certamente vinha de Featherton e era um filho da puta, potencialmente um cuzão. O problema foi que ninguém nunca disse a ele: “E não dê motivos para chamarem você de Assassino.”
O mundo lá fora era grande demais, e as possibilidades, infinitas.

***

No dia em que o resultado saiu, bem na época do Natal, Abbey contou a ele que ficara esperando do lado da caixa de correio. Ele até poderia pintar a cena:
Uma imensidão de céu aberto.
A mão na cintura.
Ela torrando no sol por uns vinte minutos antes de voltar lá dentro para buscar uma cadeira de praia e um guarda-sol, mesmo a milhares de quilômetros do mar. Depois, indo buscar uma bolsa térmica e uns picolés; minha nossa, ela precisava desesperadamente dar o fora daquele lugar.
No centro da cidade, Michael arremessava tijolos para um cara em um andaime que, por sua vez, os arremessava para outro cara. Em algum lugar bem mais alto, alguém estava assentando aqueles tijolos, e um novo pub tomava forma: para mineiros, fazendeiros e menores de idade.
Na hora do almoço, ele foi para casa andando e avistou de longe o seu futuro, dobrado e quase caindo do cilindro reservado para panfletos de propagandas da caixa de correio.
Ignorando o mau agouro, ele abriu a carta. Sorriu.
Ligou para Abbey e ela atendeu ofegante, pois tinha acabado de correr para dentro de casa.
Ainda estou esperando! Essa merda de cidade parece que faz questão de me segurar aqui durante mais uma hora ou duas, só para me castigar.
Mais tarde, porém, quando ele já tinha voltado ao trabalho, ela apareceu por lá e parou atrás dele. Michael olhou para trás, largou os tijolos, um de cada lado, e se virou para encará-la.
E aí?
Ela assentiu.
Ela soltou uma risada, e ele também, até que uma voz veio lá de cima e pousou entre eles.
Ô Dunbar, seu pirralho! Manda a porra do tijolo, caralho!
Abbey gritou de volta, na lata:
Poesia!
Abriu um sorriso e partiu.
Semanas depois, eles partiram.

***

Sim, eles fizeram as malas e se mudaram para a cidade grande, e como posso resumir aqueles quatro anos de uma aparente felicidade idílica? Se Penny Dunbar era muito boa em usar a parte para contar o todo, essas partes não passavam disto: meros fragmentos e momentos efêmeros.
Viajaram onze horas de carro, até que avistaram o horizonte da cidade.
Pararam no acostamento para admirar toda a sua extensão, e Abbey subiu no capô.
Continuaram dirigindo até que se viram dentro dela, e parte dela, a garota correndo atrás de seu diploma em administração, enquanto Michael pintava e esculpia, penando para se manter entre os gênios que o cercavam.
Ambos tinham trabalhos de meio expediente:
Uma era garçonete numa boate.
O outro trabalhava na construção civil.
À noite, se atiravam na cama, e um no outro.
Eram duas peças que se encaixavam.
Estação após estação.
Ano após ano.
De quando em vez, passavam a tarde na praia comendo peixe frito com batatas e observando as gaivotas surgirem como em um passe de mágica, como coelhos saindo da cartola. Sentiam a miríade de brisas do mar, cada qual sempre diferente da anterior, e o peso do calor e da umidade. Às vezes, permaneciam sentados enquanto uma gigantesca nuvem preta acimava o horizonte, como uma nave-mãe, então saíam correndo com a chegada da chuva. Era uma chuva que se assemelhava à própria cidade, com seu vento sul noturno que varria o litoral.
Também havia efemérides e aniversários; em uma dessas datas em especial, ela o presenteou com um livro — uma linda edição em capa dura com letras douradas — chamado O marmoreiro, e Michael varou as madrugadas lendo, noite após noite, enquanto ela dormia deitada em suas pernas. Antes de fechar, ele sempre voltava ao início, à página com a minibiografia do autor, na qual, logo abaixo, bem no meio da folha, ela escrevera:

Para Michael Dunbar, o único homem
que eu amo, e amo, e amo.
Com carinho, Abbey

Pouco depois, é claro, houve o momento de voltar à cidade natal para se casarem, em um dia tranquilo de primavera, com os corvos crocitando do lado de fora da igreja como piratas em terra firme:
A mãe de Abbey chorava de alegria na primeira fileira.
Seu pai trocara a costumeira camiseta puída de trabalho por um terno.
Adelle Dunbar estava sentada ao lado do bom doutor, olhos marejados por trás dos óculos novinhos em folha, de armação azul.
Houve Abbey chorando, toda molhada, vestido branco e fumaça.
Houve Michael Dunbar, o jovem, carregando-a no colo para o sol que brilhava lá fora.
Houve a viagem de volta dias depois, e a parada no meio do caminho, no ponto onde o rio era uma coisa extraordinária, delirante, com uma correnteza violenta — um rio com um nome estranho, mas que eles amavam: Amahnu.
Houve o momento de ficarem deitados ali, sob a árvore, o cabelo dela fazendo cócegas nele, e ele fazendo questão de não afastá-lo, jamais, e Abbey dizendo que adoraria voltar àquele lugar, e Michael afirmando:
Claro, vamos trabalhar, juntar dinheiro e construir uma casa, para voltar aqui sempre que quisermos.
Houve Abbey e Michael Dunbar:
Dois dos filhos da puta mais felizes que já tiveram a audácia de deixar a cidade.
Sem saber tudo que estava por vir.

Markus Zusak, in O construtor de pontes