segunda-feira, 18 de março de 2024

Criolo | Samba em 3 Tempos

Qualificação

Não venham com razões
e palavras estreitas.

O que sou sustenta
o que não sou.
Por mais grave a doença,
a dor já me curou.

E levo no bordão,
o campo, a cerca,
as passadas que vão,
o rosto que se acerca
na rudeza do chão.

O que sou
é dar socos
contra facas quotidianas.
E é pouco.

Carlos Nejar, in Danações

Hilda, de Duane Bryers: a pin-up fora dos padrões

Vestibulares

Teste os seus conhecimentos! Avalie suas chances! Responda essas questões: 1. Calcule o logaritmo neperiano da enésima potência da própria base. 2. O fenômeno da trissomia é provocado pela: (a) simples deleção dos cromossomos; (b) não disjunção das cromátides; (c) não reversão que ocorre na diacinese; (d) translocação do cromossoma na mitose. 3. Nos peixes cartilaginosos encontramos a tiflósolis, dobra intestinal também encontrada em: (a) poríferos; (b) platelmintes; (c) asquelmintes; (d) anelídeos; (e) moluscos. 4. Vertebrados anamniotas, tetrápodes, poiquilotermos, de respiração branquial durante a vida larvária e pulmonar, na fase adulta são: (a) répteis; (b) mamíferos; (c) anfíbios; (d) aves; (e) peixes. Se você conseguiu dar respostas corretas a essas questões isso quer dizer que você está se aproximando do Funes, o memorioso. Cuide-se. Falta sabedoria à sua memória. Ela não sabe distinguir entre o digno de ser aprendido e o indigno de ser aprendido. Acho melhor procurar um psiquiatra.

Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

Can’t Buy Me Love, de Paul McCartney e John Lennon


Can’t Buy Me Love
Compositores: Paul McCartney e John Lennon
Artista: The Beatles
Gravação: Pathé Marconi, Paris; e Abbey Road Studios, Londres
Lançamento: Single, 1964 | A Hard Day’s Night, 1964

Can’t buy me love, love
Can’t buy me love
I’ll buy you a diamond ring, my friend
If it makes you feel alright
I’ll get you anything, my friend
If it makes you feel alright
Cause I don’t care too much for money
Money can’t buy me love
I’ll give you all I’ve got to give
If you say you love me too
I may not have a lot to give
But what I’ve got I’ll give to you
I don’t care too much for money
Money can’t buy me love
Can’t buy me love
Everybody tells me so
Can’t buy me love
No, no, no, no
Say you don’t need no diamond rings
And I’ll be satisfied
Tell me that you want the kind of things
That money just can’t buy
I don’t care too much for money
Money can’t buy me love
Can’t buy me love
Everybody tells me so
Can’t buy me love
No, no, no, no
Say you don’t need no diamond rings
And I’ll be satisfied
Tell me that you want the kind of things
That money just can’t buy
I don’t care too much for money
Money can’t buy me love
Can’t buy me love, love
Can’t buy me love

Desde muito cedo começamos a pensar em nós como Lennon e McCartney. Tínhamos ouvido falar em parcerias famosas, como Gilbert e Sullivan, Rodgers e Hammerstein. Lennon e McCartney? Soava bem. Trabalhávamos em dupla e podíamos nos enquadrar nesse padrão. Colocávamos nossos nomes lado a lado em nossos cadernos escolares. “Love Me Do” surgiu por volta dessa época, assim como “One After 909”. Foi bem no comecinho, talvez em 1957. Há uns dez ou quinze anos, encontrei aquele caderno. Coloquei na minha estante. Agora já o extraviei. Não sei onde está. Talvez ainda apareça em algum lugar. É o primeiro manuscrito de Lennon e McCartney.
Seja lá como for, a gente sempre fazia isto quando comprava os discos: além de conferir o título da canção, conferia os nomes entre parênteses. Leiber e Stoller, Goffin e King. Eram nomes mágicos para nós – todos esses, em especial os americanos –, talvez nem tanto Rodgers e Hammerstein, pois eram de uma geração anterior. Essa era a nossa época, e esses eram os compositores de nossa época. Quando fomos morar em Londres, John e eu começamos a conhecer compositores profissionais – gente como Mitch Murray e Peter Callander. Eles eram ligados ao escritório de nossa editora musical e todas as canções deles se tornavam sucessos – era algo natural para eles. Mitch escreveu canções como “How Do You Do It?”, que gravamos por sugestão de George Martin e quase se tornou o single de estreia dos Beatles. Então, John e eu olhávamos para esse pessoal e dizíamos: “Certo, podemos fazer isso. E se compusermos hits, vamos ganhar dinheiro. Talvez não nos compre amor, mas vai nos comprar um carro”.
Não era só pelo dinheiro. Era o prazer de tirar uma canção da cartola e conseguir tocá-la com nossa banda, que precisava de canções. Então meio que estávamos alimentando a máquina. Perguntamos à nossa gravadora: “Quantas vocês querem, chefia?”. Os caras da Capitol Records, Voyle Gilmore e Alan Livingston, vieram falar conosco. Dois cavalheiros bem californianos, em trajes feitos sob medida. Avisaram: “Bem, queremos quatro singles e um álbum por ano”. Consideramos aquilo bem viável.
Nisso, Brian Epstein, o nosso empresário de fala mansa e afável, nos liga e diz em seu sotaque calmo e perfeito de classe alta, sem vestígio algum de ter sido criado em Liverpool: “Vocês têm a próxima semana de folga para compor o próximo álbum”. E respondemos: “Beleza”. Fazíamos uma canção por dia. A gente se encontrava na minha casa ou na casa de John. Dois violões, dois bloquinhos, dois lápis. O restante do material era composto na estrada – aqui, ali e em todos os lugares –, mas para fazer um álbum você realmente alocava uma semana ou mais e só administrava.
Era sempre uma boa ideia estar no meio do processo porque nos fazia pensar: “E se escrevêssemos algo que soasse assim?” ou “Melhor escrever uma que soe assado”. Reconhecíamos uma lacuna que precisava ser preenchida e era justamente isso que nos inspirava, mais do que qualquer outra coisa. E o fato de estarmos lançando discos que faziam sucesso ajudava bastante. Era como se fôssemos atletas. Se está ganhando as corridas, pode falar: “Sim, acho que vou participar dessa também”.
Esta canção foi escrita ao piano, no Hotel George V, em Paris. Poucos anos antes, John e eu fomos a Paris pegando caronas e passeamos nos cafés. Esta foi uma visita bem diferente. O hotel ficava perto da Champs-Élysées, e tínhamos suítes espaçosas o suficiente para ter um piano. Estávamos na cidade para fazer umas três semanas de shows no Olympia. Naquela época, os shows eram bem curtinhos, mas fazíamos duas apresentações diárias. Hoje, quando eu faço shows, tocamos cerca de quarenta canções em três horas. Naquela época, provavelmente eram menos de dez, em torno de meia hora, se você inserisse um pouco de bate-papo com o público. O set list incluía canções como “From Me to You”, “She Loves You”, “This Boy” e “I Want to Hold Your Hand”. As outras eram covers, como “Roll Over Beethoven”, “Twist and Shout” e, para terminar, “Long Tall Sally”. Nossos dias em Hamburgo, quando tocávamos a noite inteira, todas as noites, serviram como um ótimo treinamento para temporadas como essa.
E como se quarenta e poucos shows não fossem suficientes, Brian também organizava todos esses outros compromissos, como sessões de composição e gravação. Nesse período em Paris, acabamos regravando “I Want to Hold Your Hand” e “She Loves You” em alemão: “Komm, gib mir deine Hand” e “Sie liebt dich”. A banda? Die Beatles. O nosso produtor, George Martin, veio gravar no estúdio Pathé Marconi, e ao mesmo tempo gravamos os canais básicos para “Can’t Buy Me Love”.
É um blues de doze compassos, com um toque dos Beatles no refrão, em que introduzimos uns acordes menores. Em geral, os acordes menores são usados na estrofe de uma canção, e os acordes maiores elevam e iluminam o clima no refrão. Aqui fizemos o contrário. A ideia é que todos esses bens materiais são muito bons, mas o dinheiro não compra o que você realmente precisa. Tem uma ironia aqui. Um pouco antes de Paris, estávamos na Flórida, onde o dinheiro talvez não comprasse amor, mas certamente comprava muita coisa. Acho que a premissa continua valendo. O dinheiro não compra uma família feliz nem amigos em quem você possa confiar. Mais tarde naquele ano, Ella Fitzgerald também gravou a canção, o que foi uma verdadeira honra.
O single fez muito sucesso, chegou ao número um no Reino Unido e nos Estados Unidos ao mesmo tempo. E então, curiosamente, foi desbancado do primeiro lugar no Reino Unido por “A World Without Love”, canção que escrevi para o irmão de Jane Asher, Peter. Ele e um amigo assinaram contrato com a EMI, e a canção foi lançada como a estreia da dupla Peter & Gordon. Tenho certeza de que também alcançou o primeiro lugar nos Estados Unidos. Escrevi essa canção quando eu tinha dezesseis anos em minha casa em Liverpool. Não achei que era forte o bastante para os Beatles, mas foi ótima para a carreira de Peter & Gordon. A canção começa com o verso “Please lock me away”, e quando eu a tocava era como se estivesse pedindo para me trancafiarem. Então John respondia, “Sim, ok”, e brincávamos que esse era o fim da canção.
Provavelmente muita gente por aí associa “Can’t Buy Me Love” ao filme A Hard Day’s Night (Os reis do iê-iê-iê). Ela toca numa cena em que enfim conseguimos sair do estúdio e nos divertir um pouco, numa espécie de video- clipe. Na realidade, a canção foi escrita especialmente para a trilha sonora do filme. O detalhado roteiro de Alun Owen resumia as nossas falas em breves tiradas, e assim não precisamos decorar muito. Mas, por isso, o filme é meio que responsável por imprimir em cada um de nós uma persona pública: John era o inteligente e mordaz; George, o calado; Ringo, o engraçado. Fui escolhido como o bonitinho. Era estranho ser reduzido a um par de características simplificadas aos olhos do mundo, e acho que muita gente até hoje ainda pensa em nós com base nos diálogos escritos para esse filme. Esse ponto de vista pode ser muito limitante, mas aprendemos a ignorá-lo.
Um detalhe importante não mudou: o tamanho do meu casaco. Em 1964, na estreia de A Hard Day’s Night, em Londres, usei um casaco de smoking com detalhes em veludo. Em 2016, na estreia do filme sobre a turnê dos Beatles, Eight Days a Week, também em Londres (e talvez pelo fato de, àquela altura, eu ser vegetariano há quarenta anos), vesti o mesmo casaco.

Paul McCartney: As Letras (1956 até o presente)

O sonho e o fado

Creso expulsou Solon de Sardes porque o famoso sábio desprezava os bens terrenos e somente se preocupava com o fim derradeiro das coisas. Creso se acreditava o mais feliz dos homens. Os deuses decidiram o seu castigo.
Sonhou o rei que seu bravo filho Atis morria de um ferimento produzido por ponta de ferro. Mandou guardar as lanças, dardos e espadas nos quartos destinados às mulheres e decidiu o casamento de seu filho. Nisto estavam quando chegou um homem com as mãos tintas de sangue: Adastro, frígio de sangue real, filho de Midas. Pediu asilo e purificação, pois assassinara involuntariamente um irmão e havia sido expulso do convívio dos seus. Creso concedeu-lhe ambas as graças.
Apareceu, então, em Mísia, um terrível javali que destroçava tudo. Aterrorizados, os mísios pediram a Creso que enviasse o valente Atis e outros jovens, porém o rei explicou que seu filho era recém-casado e devia atender seus assuntos privados. Atis soube disto e pediu ao rei que não o humilhasse. Creso contou-lhe o sonho. “Então, disse Atis, nada devemos temer, pois os dentes do javali não são de ferro”. O pai concordou e pediu a Adastro que acompanhasse seu filho, ao que o frígio assentiu, não obstante seu luto, pois se sentia em dívida com Creso. Durante a caçada Adastro, buscando atingir o animal com sua lança, matou Atis. Creso aceitou o destino que o fado lhe tinha adiantado em sonhos e perdoou a Adastro. Este, porém, degolou-se sobre a sepultura do infortunado príncipe. Assim o conta Heródoto, no primeiro dos Nove livros da história.

Jorge Luís Borges, in Livro de Sonhos

Xexéus latinistas e as tapiucabas


Deve haver borrego novo pelas redondezas porque o xexéu tem procurado arremedar o balido intermitente. Repete, corrige, retoma a imitação, volta a corrigir-se numa aplicação temerosa de faltar ao êxito.
Parece que pretende exibir-se diante de um auditório de especialistas julgadores. Nem mesmo é possível atinar-se com a finalidade daquela reprodução sensivelmente cômica. Nem porque, ante tantos motivos provocadores e sonoros, o xexéu escolheu o berro do borrego novo para dedicar-lhe atenção e esforço representativo. O dia inteiro, sempre que há tempo disponível, volta ao exercício numa obstinação exemplar. Chegou mesmo a uma aproximação plausível e, sentindo o impossível de melhorá-la, executou o trecho muitas horas, gozando ele sozinho as delícias da técnica pessoal.
Tempos passados no interior da casa abandonada e semidestruída uma porta rangia, oscilante nos gonzos, largando um sonido perro e rouco que lembrava ao longe um triste mugido de novilho. O xexéu prestou cuidadosa observação ao som e iniciou um curso intensivo para reproduzi-lo fielmente. A porta terminou desabando e o rangido acabou. O xexéu é que ficou vivendo o emperrado e surdo rumor numa repetição de máquina registradora. Era tal qual a porta, na sua música difícil e disfônica de ferrugem velha, condenada à queda e ao silêncio.
Passeia agora por toda extensão do galho em cuja ponta pendurou o seu ninho oblongo e cinzento de uns trinta centímetros, impenetrável à chuva e vento, com entrada cômoda situada contra a direção da ventania mais comum na região. Creio que o xexéu observa e anota a meteorologia local para decidir qual será o vento reinante na maior porção do ano. Aqui evita o lés-sueste e mesmo sueste gemedor orientando a portinha ano sentido contrário. A bolsa é presa por filamentos colados poderosamente por uma substância que talvez tenha a própria ave por produtora. Batido por ventanias, balança-se no vaivém perigoso mas sem possibilidade de despencar e cair. Quem já viu ninho de xexéu ceder mesmo nas loucuras da viração de agosto?
Como ia dizendo, o xexéu passeia no galho trauteando trechos indecisos de seu vasto repertório. De tanto imitar as vozes alheias quase já não recorda as próprias produções. Se o xexéu dedicasse ao engenho pessoal dois terços da energia despendida no arremedo das habilidades dos outros, seria um dos maiores cantores deste mundo, na classe principesca dos rouxinóis, graúnas, canários e sabiás. Mas sua inteligência afiada e magnífica dedica-se à prática arriscada dos plágios felizes.
É um lindo pássaro, justiça se lhe faça. Preto luzente, a mancha dourada alarga-se-lhe pelo dorso e cauda que termina negra. A base alar e o bico são de ouro pálido, macio e sedutor. As asas fortes permitem-lhe voo rápido, decisivo, quase sempre curto e com descidas espetaculares em curvas e diagonais parecidas com uma vertical.
Chamam-no também japi, japim e, no Ceará, bom-é. A família se orgulha em possuir figuras ilustres e com renome popular, a graúna, rainha do gorjeio e imitadora consumada, o papa-arroz sereno, o azulão sentimental, o decorativo papo-de-fogo, o corrupião boêmio, o encontro, famoso pela incidência do canto em escala cromática, e também o pássaro-preto, vadio, impenitente, vergonha da gens, mas elemento fornecedor de anedotas de sua vida airada irresponsável, sugestiva.
Nunca conseguiram explicar ao xexéu que ele é um icterídeo, do latim Icterus, do grego Iktéros, significando “amarelo”. Todos ostentam em maior ou menor percentagem o listrão dourado que é a cor heráldica, indispensável nestes fidalgos vagabundos.
Seu talento é vivo, álacre, comunicativo mas dispersivo, perdulário, fugaz. É uma hospedaria de imagens que se exteriorizam nas impressões sucessivas. Nunca a residência normal de uma ideia única que tenha força realizadora e fecunda. O xexéu é o artista das eternas preparações, dos ensaios inacabáveis, das promessas sem fim. Vive escolhendo, na série dos temas melódicos, o incomparável motivo para sua criação perpetuamente adiada. É o tipo modelar do amador profissional. Nunca podemos exigir-lhe acabamento regular nem perfeição normal.
É anedótico, bem-humorado, zombeteiro. Incrível a sua capacidade imitativa. Pode repetir todos os cantos, bulhas, rumores.
Tivemos mais de dois anos um xexéu. Aprendeu, prisioneiro na grande gaiola, as vozes dos animais domésticos, de todas as coisas familiares que o cercavam comumente. Foi logo depois da Primeira Grande Guerra. O xexéu tomou o nome de Guynemer, um ás francês que apaixonava pela fria audácia e desaparecera num combate como El-rei Dom Sebastião.
Meu pai fazia a sesta numa rede no vasto alpendre da casa. Vezes o armador de ferro atritava impertinentemente na escápula. Meu pai mandava azeitar e o guinchado desaparecia. Mas, dias depois, voltava, exigindo a mesma técnica. Num domingo escápulas e armadores gemiam, metálica, desesperadamente. Pôs-se óleo. O ruído continuou, insistente. Meu pai repetiu a dosagem. Deitou-se. O rumor persistiu. Assombração! Verificou-se afinal que era o xexéu, imóvel e grave no seu pequenino poleiro, bico para baixo, reproduzindo, com fidelidade impecável, a cantiga do armador e da escápula. Abrindo e fechando o olho azul, gozava a pilhéria que fizera.
As galinhas lançavam seu grito de alarme e de socorro. Có-có-cóóóóóóó! Vai-se ver o que estava excitando as poedeiras. Có-có-cóóóóóóó! Nenhuma anormalidade. Tudo quieto. Era Guynemer, solitário, divertindo-se em derramar o agudo “S.O.S.” das galinhas no alpendre tranquilo.
O jardineiro costumava largar uns assobios sem fim, com se chamasse vento. Especialmente nas horas de trabalho mais apurado, assobiava alto e fino. Minha mãe incomodava-se e pedia-lhe que fechasse o assobiador por algum tempo. Numa tarde, minha mãe mandou o jardineiro parar o assobio umas quatro vezes. Desculpava-se o homem que não estava assobiando de maneira alguma. Todos nós, entretanto, ouvíamos distinta e teimosamente o apito irritante. Ao final, depois de buscas, era ainda Guynemer, matando o tempo, plagiando o assobio do jardineiro inocente.
Nas vésperas de uma viagem demorada libertei todos os meus prisioneiros. Menos Maroca, a coruja, que fugira antes levando na pata um troço da corrente. Guynemer na tarde seguinte voltou, esvoaçando pelo alpendre. Pousou nos móveis, deixando-se pegar. Recolheram-no à gaiola, deixando a porta aberta. Naturalmente desanimara recusando esforçar-se para apanhar insetos quando estava habituado com cibo fácil e farto. Continuou residindo na sua gaiola e dando habituais e longos passeios higiênicos. Ao entardecer, regressava fielmente à gaiola e à comida de casa. De uma destas jornadas, com seu homônimo, Guynemer n’est pas rentré
Naturalmente os xexéus da mangueira, em liberdade, distam de hábitos e maneiras daqueles que estão no cativeiro imerecido. Precisam fazer o ninho e lutar pela alimentação, conquistar a fêmea, cantar os sinais comunicantes para outros ninhos e à namorada difícil de render-se ao prosaísmo da vida conjugal continuada, um dos exemplos afirmativos do homomorfismo monogâmico.
Os xexéus da mangueira não arremedam as vozes domésticas. Apenas um deles, ao deduzir-se fugitivo de alguma gaiola próxima, imitava a galinha chamando os pintos. Devia ser uma simples reminiscência que depois diluir-se-ia no meio das outras sugestões oferecidas pela movimentação sem limites.
O cearense José Carvalho contou que, uma vez, numa sua fazenda no Amazonas, debalde procurou um cordeiro cujo berro angustiado se repetia. Atinou que era obra de um japim, no alto dum galho, desnorteando com a perfeição imitativa a curiosidade do criador.
Arremedador de todos os pássaros e animais, o japim não ousa repetir o simples e fácil pio do tangurupará (Bunconídeo, gênero Monasa), cinzento, com o bico escarlarte-vivo. A explicação é dada por uma história. Irritado pelo japim contrafazer-lhe o assovio, o tangurupará procurou-o ameaçando que faria nele o que fizera ao avô dos japins se ousasse piar na sua maneira. “– E que fez você com meu avô?” – Matei-o e bebi-lhe o sangue! Olhe para o meu bico!” Exibia o bico vermelho. Nunca mais o japim voltou a assobiar como tangurupará.
José Carvalho fez uma experiência curiosa. Vendo aproximar-se um bando de japins (voam em bando) imitou o pio do tangurupará. Imediatamente todo o bando de japins desceu e escondeu-se nas árvores e moitas, literalmente espavorido.
José Carvalho tenta uma justificativa singular. Segundo supõe é o tangurupará a sentinela da floresta, encarregada de anunciar com o pio inimitável (de tão fácil) aos animais a aproximação de qualquer perigo. Ouvindo-o, aves, quadrúpedes fogem. A Natureza ou o clássico “instinto” ensinou a todos que não deviam e não podiam arremedar o aviso do guarda avançado sob pena de confusão desmoralizadora. E nem uma ave repete o aviso salvador por interesse coletivo. O xexéu amazônico foi um dos primeiros a aceitar e cumprir o pacto de honra.
Da sua faculdade imitadora já Frei Vicente do Salvador registrara: “– Tapéis, do tamanho de melros, todos negros, e as asas amarelas, que remedam no canto todos os outros pássaros perfeitissimamente, os quais fazem seus ninhos em uns sacos tecidos”.
Proverbial, entretanto, o seu mau odor, citado no catinga de xexéu, índice, para os melindres olfativos, da presença de negros.
Injusta aliás é a imagem ninho de xexéu, valendo desalinho, desarrumação confusa e grotesca. O ninho do xexéu é obra asseada e muito para ver-se, cuidada e bonita.
Este ninho, tecido impenetrável às chuvas e defendido dos ventos, pendura-se à extremidade do galho, oscilando como um fruto. Dizem ser obra-prima defensiva do xexéu contra o avanço das cobras trepadeiras, famintas por ovos. Não há cobra, mesmo de asas, que consiga invadir um ninho de xexéu. A segunda razão, material e mecânica, é a situação do mesmo.
A primeira razão é a tapiucaba, vespa de um centímetro e meio, anegrada e com a barriga vermelha, voando e zumbindo ameaçadoramente. São as madrinhas dos filhos dos xexéus. Aliados, compadres, familiares.
Esta simbiose já possui bibliografia e vem de uma lenda amazonense que Barbosa Rodrigues colheu.
Os pássaros, ofendidos pelos arremedos dos japins, destruíam os ninhos, quebrando os ovos, matando-lhes os filhos sempre que os pais se ausentavam. Os japins pediram às vespas que amadrinhassem-lhes os filhos. As vespas aceitaram com a condição única dos ninhos serem construídos nas árvores onde elas morassem. Encarregar-se-iam de defender os afilhados. E cumprem o trato. Onde há xexéu há tapiucaba na mesma árvore, zumbindo e mordendo qualquer atrevido, humano ou irracional, tentador.
Há uma informação fidedigna que o xexéu tributa a maior estima às tapiucabas, o que não os impede de engoli-las com a maior sem-cerimônia. Não é sua alimentação cotidiana mas, lá uma vez, para mudar o cardápio, o xexéu deglute algumas dezenas de comadres sem que esta traição invalide a continuidade do tratado desde tempo imemorial.
O mesmo informador evocava o castigo humilhante que as tapiucabas tinham dado a um macaquinho-de-cheiro (Saimiri sciurens) que infringira o direito das imunidades territoriais da residência dos xexéus e tapiucabas. O infeliz macaco foi coberto pelas vespas furiosas que o obrigaram a pular de um alto galho, guinchando desesperadamente de dor na punição pelo atrevimento de ter ousado desrespeitar os privilégios daquela região neutra. O macaco, restabelecido, nem mais sequer olhava a cajazeira.
Há igualmente versão dada fidedignamente de uma outra aliança dos xexéus com uma certa casta de formigas denominadas tapiu ou tapiúa. É formiga arbórea, que afugenta todas as demais espécies e ataca os ninhos, exceto os do compadre xexéu. Afirmam que esta concordata é comum quanto o contrato de auxílio mútuo e não agressão com as tapiucabas.
Aves de bando, vivendo em grupo, mantêm-se em boa educação individual, valorizando as alegrias do convívio. Nunca as vi empenhadas em duelos ou rusgas, apesar dos hábitos bulhentos e dos volteios sonoros ao derredor dos galhos ninheiros.
O canto próprio não é simples mas variado e longo. Apenas não é comum ouvi-lo entoar sua partitura, especialmente os xexéus de gaiola que se viciam nas imitações múltiplas. Terminam fazendo um pot-pourri agradável mas artificial, resultado dos arremedos e raros troços de cantiga típica. Guynemer era, desgraçadamente, um destes. Apesar da antiga e boa amizade, jamais lhes ouvi ou entendi pronunciar o próprio nome durante o canto, conforme notícia velha e comum em muitas fontes impressas.
Não sei se esta aptidão imitativa redunda em louvor para a inteligência do xexéu. O poder da imitação sonora, para vozes e não para ruídos como os psitacídeos, para vozes e ruídos como para os xexéus da mangueira, resulta da flexibilidade da siringe aliada à faculdade retentiva da ave.
Pode significar desvalorização do próprio canto, como o dos xexéus, que o possuem variado e longo, ou substituição pelo rudimentarismo da voz individual, como a das araras e dos papagaios. Se no homem a vocação para idiomas e a relativa facilidade de aprendê-los e manejá-los significa, realmente, não um índice de inteligência no plano criador (que é a fisionomia positiva da inteligência) e sim apropriação de formas aquisitivas de cultura pelo aproveitamento dos meios de comunicação, nas aves esta maleabilidade não importa em valorização específica. Não é um processo mimético de defesa nem um elemento sedutor para aproximar a fêmea. Havendo canto típico e diferenciado para cada família, dentro dos naturais limites onde as variações aparecem e mesmo modismos que são aspectos do virtuosismo de certas aves, a técnica da repetição simuladora dos motivos melódicos alheios é bem mais indicadora de pouca fixação dos caracteres musicais do grupo do que de aprovada habilidade do executor.
Sei muito bem que a ciência do plágio exige sutilezas de observação, finura mnemotécnica, dotes de adaptação, recriação com assimilação do material estranho, às vezes superiores ao esforço de uma própria criação, autenticamente original. Como inteligência não é boa memória, não tenho o condão imitativo do xexéu em alta conta. Pássaro chistoso, engraçado, palhaço, é classe pejorativa; descida visível da própria e natural dignidade ornitológica. Penso que é uma denúncia segura de aproximação humana, de reminiscências de alegre cativeiro anterior, jogralices para divertir os senhores, deméritos jubilosos que se fixaram nos genes e passaram a constituir permanentes concretas.
Daí esta impressão de subalternidade serviçal, de meneio doméstico bajulador, de subserviência funcional da possível e mecânica inteligência papagaial. Converge para ele o anedotário malandro, soluções finórias e felizes dos desajustados humanos que o têm como modelo, parasita consciente, farto e cínico, sem linguagem, sem ninho, sem costumes, numa perpétua disponibilidade de acomodação ao ambiente, às sugestões, às doutrinas do momento, hilariante, tolerado, inferior. Não é possível compará-lo ao bem-te-vi livre e forte, brigão e voraz, zombeteiro com personalidade, divertindo-se por sua conta e nos cânones de sua vontade incomprimível. A conversa usual, sabida e velha, é que todo xexéu é latinista ou estudante de latinidade nas horas do anoitecer. Espalhados pelos galhos dão começo a uma sabatina barulhenta e nítida, verificação melancólica quanto ao adiantamento precário dos alunos, secular e sucessivamente inscritos no curso vespertino. Sempre há um xexéu arguente e o bando que responde como pode.
Certo é que realmente parece versão exata e cômica do canto dos xexéus a declinação pronominal latina. Ouve-se claramente:
Quid-quae-quod! Ablativo do plural?
Frase pronunciada o mais rapidamente possível e com o final interrogativo.
Vem a triste resposta errada de um xexéu ignorante e vadio: – Ab-qua-quo-que, em vez do natural quibus.
Como para corrigir, o xexéu velho, com ares de decurião, repete a pergunta e ouve o mesmo erro, voltando a cena a suceder-se até que, cansados todos, adiam para a tarde imediata a arguição infrutuosa.
Quid-quae-quod! Ablativo do plural?
A noite desceu e todo bando mergulha nos ninhos, guardados pelas patrulhas das tapiucabas insones. Lá, um ou outro ainda põe a cabecinha esperta fora do janelão-porta-nobre insistindo na arguição inútil: – Quid-quae-quod! Ablativo do plural?
Sente-se o voo surdeado de uma sentinela verificando a segurança do acampamento. Depois o silêncio envolve a todos.
Boa noite!…

Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro

domingo, 17 de março de 2024

Chico Buarque | Se Eu Soubesse

Diálogo do desconhecido

Posso dizer tudo?
Pode.
Você compreenderia?
Compreenderia. Eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor tudo o que não sei e – por ser um campo virgem – está livre de preconceitos. Tudo o que não sei é a minha parte maior e melhor: é a minha largueza. É com ela que eu compreenderia tudo. Tudo o que não sei é que constitui a minha verdade.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Calvin

Os Nascimentos | 1531 – Ilha Serrana

O náufrago e o outro

Um vento de sal e de sol castiga Pedro Serrano, que perambula nu pelo despenhadeiro. Os alcatrazes revoam perseguindo-o. Com uma das mãos como viseira, ele tem os olhos postos no território inimigo.
Desce até a enseada e caminha pela areia. Ao chegar à linha da fronteira, mija. Não pisa a linha, mas sabe que se do lado de lá o outro estiver olhando de algum esconderijo, dará um pulo para pedir satisfações por este ato de provocação.
Mija e espera. Os pássaros gritam e fogem. Onde terá se metido? O céu é um resplendor branco, luz de cal, e a ilha uma pedra incandescente; brancas rochas, sombras brancas, espuma sobre a areia branca, um mundinho de sol e de cal. Onde terá ido parar este canalha?
Faz muito tempo que o barco de Pedro partiu-se em pedaços, naquela noite de tormenta, e os cabelos e a barba já lhe chegavam ao peito quando apareceu o outro, montado em uma madeira que a maré raivosa jogou à costa. Pedro escorreu-lhe a água dos pulmões, deu-lhe de comer e de beber e ensinou-lhe a não morrer nesta ilhota deserta, onde só crescem as rochas. Ensinou-lhe a virar as tartarugas e a degolá-las de um talho, a cortar a carne em rabanadas para secá-la ao sol e a recolher a água da chuva nos seus cascos. Ensinou-lhe a rezar pela chuva e a capturar mariscos debaixo da areia, mostrou-lhe refúgios de caranguejos e camarões e ofereceu-lhe ovos de tartaruga e as ostras que o mar trazia, grudadas nos galhos dos mangues. O outro soube por Pedro que era preciso recolher tudo que o mar entregasse aos arrecifes, para que noite e dia ardesse a fogueira, alimentada por algas secas, sargaços, ramos perdidos, estrelas-do-mar e ossos de peixe. Pedro ajudou-o a levantar um telhadinho de cascos de tartaruga, um quase nada de sombra contra o sol, na ilha sem árvores.
A primeira guerra foi a guerra da água. Pedro suspeitou que o outro roubava enquanto ele dormia, e o outro acusou-o de beber goles de animal. Quando a água esgotou-se, e se derramaram as últimas gotas disputadas a socos, não tiveram mais remédio além de beber cada um a própria urina e o sangue que arrancaram da única tartaruga que se deixou ver. Depois estenderam-se para morrer na sombra, e não lhes restava saliva para nada mais do que insultar-se baixinho.
Finalmente a chuva os salvou. O outro opinou que Pedro bem que poderia reduzir à metade o teto de sua casa, já que os cascos escasseavam tanto:
Tens um palácio – disse – e em minha casa passo o dia torto.
Que te fodas tu – disse Pedro – e a puta que te pariu. Se não gostares de minha ilha, dê o fora! – E com um dedo apontou o vasto mar.
Resolveram dividir a água. Desde então, há um depósito de chuva em cada ponta da ilha.
A segunda foi guerra do fogo. Se turnavam para cuidar da fogueira, para o caso de que algum navio passasse ao longe. Uma noite, estando o outro de guarda, a fogueira se apagou. Pedro despertou-o com maldições e safanões.
Se a ilha é tua, ocupa-te dela, seu puto – disse o outro, e mostrou os dentes.
Rodaram pela areia. Quando se fartaram de golpear-se, resolveram que cada um acenderia seu próprio fogo. A faca de Pedro açoitou a pedra até arrancar-lhe chispas; e desde então há uma fogueira em cada ponta da ilha.
A terceira foi a guerra da faca. O outro não tinha com que cortar e Pedro exigia camarões frescos como pagamento cada vez que lhe emprestava a faca.
Explodiram depois a guerra da comida e a guerra dos colares de caracóis.
Quando acabou a última, que foi a pedradas, firmaram um armistício e um tratado de limites. Não houve documento, porque nesta desolação não se encontra nem uma folha de cactus para desenhar um rabisco, e além disso nenhum dos dois sabe assinar; mas traçaram uma fronteira e juraram respeitá-la por Deus e pelo rei. Jogaram para o alto uma vértebra de peixe. A Pedro coube a metade da ilha que dá para Cartagena. Ao outro, a que dá para Santiago de Cuba.
E agora, de pé frente à fronteira, Pedro morde as unhas, ergue a vista para o céu, como se buscasse chuva, e pensa: “Deve estar escondido em algum canto. Sinto seu cheiro. Porco. No meio do mar, e jamais toma banho. Prefere fritar-se em seu óleo. Por aí anda, sim, escondendo-se”.
Ei, miserável! – chama.
Lhe respondem o trovão da maré e o alvoroço das aves e as vozes do vento.
Ingrato”, grita, “Filho da Puta!”, grita, e grita até arrebentar a garganta, e corre e percorre a ilha de ponta a ponta, a torto e a direito, sozinho e nu na areia sem ninguém.

Eduardo Galeano, in Os Nascimentos

Em Defesa do Padrão Nacional

Não entendo nada de mulher, claro. Aliás, ninguém entende, nem mesmo Freud, que, num momento de aparente exasperação, perguntou o que as mulheres querem e morreu sem saber. Por sobre isso, mister se faz ressalvar que as considerações a seguir são feitas apenas por um amador, esforçadíssimo mas jamais um craque junto a elas, não contando com a experiência de certos amigos meus (alguns já finados, devem ter morrido disso), muito mais afeitos ao convívio com o afamado Eterno Feminino. Para parco consolo nosso, creio que minha condição é partilhada pela maioria dos cada vez mais perplexos machos da espécie. Somos mais ou menos como torcedores de futebol — temos teorias que julgamos irretorquíveis, mas bem poucos somos bons de bola.
Sou provocado a aventurar-me em terreno tão resvaladiço por causa das notícias, cada vez mais frequentes, de moças que, na busca de atingir o padrão de beleza vigente, caem vítimas de anorexia nervosa e morrem. Ninguém gosta de saber desses acontecimentos tristes, motivados pela ânsia de identificação com o modelo hegemônico ou, mais patético ainda, pelo afã de ter sucesso numa carreira equivocadamente julgada fácil, mas dificílima e penosíssima, onde um número enorme de jovens se perde todos os anos. Mas, claro, só aparecem as lindas e bem-sucedidas, cuja vida para suas admiradoras é um mar de rosas de festas e glamour.
E que padrão de beleza é esse, será mesmo o padrão, digamos, “natural”, será de fato o preferido por homens e mulheres que não estão comprometidos com o conhecido “Barbie look”? Quanto às mulheres, massacradas sem clemência por gostosas irretocáveis (na verdade retocadas pelo Photoshop), que não têm uma manchinha na pele, uma estriazinha escondida, uma celulitezinha e ostentam dotes de uma perfeição na verdade fictícia, não posso falar muito. Mas quanto aos homens posso, porque ouço a opinião de muitos deles, e não só saudosistas do modelo violão (em inglês “hourglass look”, aparência de ampulheta), mas jovens também.
Em primeiro lugar, devo afirmar enfaticamente, não por demagogia ou qualquer interesse subalterno, mas em função de uma permanente pesquisa sociológica informal, existe vasto e devotado mercado para as gordinhas e até para as mais gordinhas do que as gordinhas. Meu querido e finado amigo Zé de Honorina deplorava a “falta de carne” da atualidade e a ausência de cintura que parece ser causada pela malhação contemporânea e admirava com sincero fervor estético certas enxúndias bem colocadas, em moças e senhoras que passavam pelo largo da Quitanda, onde fazíamos ponto. Eu mesmo tenho uma comadre gordinha, casada há décadas com um marido amantíssimo que a conheceu bem gordinha e fica indignado quando ela perde um quilinho.
Fatores culturais também interferem nisso. Se apreciamos uma calipígia (da bunda bela), as fronteiras com a esteatopígica (da bunda gordinha) são tênues e a rapaziada do boteco qualifica de divinal o que as americanas, que, para começo de conversa, não têm bunda nem para pensar em concorrer com a brasileira e, portanto, tendem a desdenhar o que não podem alcançar, consideram gorda. Mulher tem que ter cintura, violão ou ampulheta não interessa, mas é vital a formosa concavidade entre as costelas e as ancas. Creio mesmo que, consultada a opinião pública, tanto de homens como de mulheres, mesmo as descinturadas por uma malhação perversa, a maioria concordaria em que mulher tem que ter cintura, faz parte da figura feminina, é clássico, é até constituinte do doce mistério das mulheres. E há muitas gordinhas, sim senhor, mantidas no modelo violão. Está bem, violoncelo, mas com a cintura no lugar. E sei que as descinturadas, conscientemente ou não, também sabem disso, porque noto, entre as muito fotografadas, que elas procuram sempre posar curvando os quadris para um lado, fingindo ainda ter a cintura insensatamente perdida.
Agora, para alegria dos violonófilos e cinturistas, chega evidência científica de que o padrão esquelético ou Barbie nunca esteve com nada, não deverá estar com nada no futuro e só está com alguma coisa no presente devido a interesses de mercado circunstanciais. Diz aqui numa revista científica que o dr. indiano Devendra Singh, da Universidade do Texas, chefiando uma equipe que analisou centenas de milhares de textos literários ocidentais, onde eles refletiam as preferências estéticas de suas épocas, chegou à conclusão de que a cintura, notadamente a cintura fina, sempre foi elogiadíssima nas mulheres e tida como um elemento básico em sua beleza. Mais ainda, o dr. Singh estudou detidamente os dois grandes épicos indianos Mahabharata e Ramayana, além de poesia chinesa clássica, e as referências à beleza das mulheres com cintura fina são inúmeras.
A tal ponto chegaram as pesquisas do dr. Singh, também diz aqui na revista, que sua conclusão é de que o cérebro humano é naturalmente programado (wired) para considerar a cintura, principalmente a fina, como parte essencial da beleza feminina. E, mais ainda, não se trataria de algo arbitrário na evolução da espécie, mas relacionado com a saúde. As que têm cintura — a-ha! — têm mais saúde. Isto sem dúvida abre horizontes quiçá radiosos para muitos de nós, homens ou mulheres, hoje escravizados pelo pensamento único imposto por estetas de meia-tigela. Os modernos somos nós, os violonófilos; as antiquadas são as Barbies. Espero que o país se una em torno do restabelecimento do legítimo padrão nacional e que a mulher brasileira, pioneira natural solertemente desviada por uma falsa modernidade colonizada, reassuma sua estatuesca e inimitável majestade de Vênus tropical, das cheinhas às magrinhas, todas com cintura e bunda, o Criador seja louvado.

João Ubaldo Ribeiro, in O Rei da Noite

As rãs | 6.


Naquela altura eu achava que minha tia se ocupava unicamente do meu casamento com Leoazinha e já tinha esquecido Wang Vesícula. Acreditava que ela, movida pela compaixão, aproveitava meu casamento como desculpa para ganhar tempo e deixar o bebê nascer. Só depois eu saberia que a lealdade da minha tia ao seu trabalho resvalava para o campo da loucura. Ela sabia usar a força, mas também a estratégia, tinha tudo sob controle. Não questiono a sinceridade dela ao arranjar meu casamento com Leoazinha, minha tia de fato acreditava que formávamos um casal ideal. Mas fanfarrear nosso casamento, libertar Chen Nariz e a filha, mandar cessarem as buscas, tudo isso formava uma cortina de fumaça para baixar a guarda de Wang Vesícula e de quem quer que a estivesse acobertando. A tia queria matar dois coelhos de uma vez e antevia o seguinte desfecho: a amada discípula, a quem ela queria como filha, se casaria com seu sobrinho e finalmente teria um lar, ao mesmo tempo Wang Vesícula seria “capturada e levada à justiça” e a criança ilegal em seu ventre seria eliminada antes de sair da “boca da panela”. Essas podem não ser as palavras mais apropriadas para descrever o trabalho dela, mas não sou capaz de encontrar outras mais precisas.
Na manhã da véspera do meu casamento, seguindo a tradição, fui à sepultura da minha mãe para queimar o “dinheiro fantasma”, que serve para avisar à alma dela sobre as bodas e convidá-la a comparecer. Assim que acendi o fogo, um redemoinho súbito veio espalhar as cinzas sobre o túmulo. Mesmo sabendo se tratar de um fenômeno explicável pelas leis da física, fui tomado de um assombro fora do comum. A figura trêmula da minha mãe surgiu em minha mente, sua fala ecoava em meus ouvidos, inteligente, simples, cheia de sabedoria. Não consegui segurar as lágrimas. Se minha mãe ainda pudesse falar, o que diria desse casamento?
Depois de rodopiar sobre a sepultura de minha mãe, o redemoinho mudou de direção e foi para o jazigo verdejante de Wang Renmei. Nesse momento, o papa-figo no galho de pessegueiro soltou um pio longo e choroso, como se rasgassem suas entranhas. No imenso pessegal, os frutos já estavam maduros. Minha mãe e Wang Renmei foram enterradas em nossa parte do pomar. Colhi dois pêssegos vermelhos nas pontas, depositei um no túmulo da minha mãe e, carregando o outro com ambas as mãos, passei por alguns pessegueiros até chegar à sepultura de Wang Renmei. Antes de vir, meu pai me disse: “Quando for queimar os papéis, não se esqueça de queimar também um pouco no túmulo dela”. “Ainda não tive tempo”, dizia a mim mesmo, “Wang Renmei, me perdoe, mas não vou te esquecer, não vou esquecer o bem que você me fez. Acredito que Leoazinha é uma boa pessoa, ela vai ser boa para Yanyan, se não for, me separo dela.” Queimei o papel diante do túmulo, subi e coloquei um papel novo sobre o jazigo. Depois depositei o pêssego como oferenda. “Wang Renmei”, murmurei, “sei que não deve estar gostando disso, mas eu convido você, de coração, a voltar para casa na companhia de minha mãe, para participar do meu casamento, vou deixar no altar da sala quatro pãezinhos de vapor frescos e vários pratos diferentes e ainda aqueles bombons de licor que você primeiro achou que pareciam remédio, mas depois adorou, honradas sejam as almas a quem deixo esta oferenda!”
Voltando da visita aos túmulos, o capim dos dois lados da trilha passava dos joelhos, a água da chuva enchia a vala à beira do caminho. Ladeando a vereda, o pessegal se estendia para o sul até a margem do rio Mo e para o norte até a margem do rio Jiao. Por entre as árvores, os agricultores já se ocupavam da colheita dos frutos, tratores de três rodas corriam na estrada ao longe.
Wang Fígado apareceu na minha frente, como se tivesse brotado do chão, bloqueava meu caminho. Vestia uma farda militar seminova — a mesma que eu lhe dera de presente no ano passado, lembrei na mesma hora —, o cabelo à escovinha, recém-cortado, a barba bem-feita. Estava magro como sempre, mas parecia bem-disposto, sem o desleixo e o desalento que compunham sua figura habitual. Ainda que seu estado de espírito me trouxesse algum consolo, o coração continuava aos pulos.
Wang Fígado”, falei, “veja bem…”
Ele balançou a mão, sorrindo, mostrava os dentes cor de terra amarela: “Corre Corre, não precisa explicar nada, eu compreendo, eu entendo, desejo que sejam felizes”.
Meu irmão…”, eu experimentava uma confusão de sentimentos, estendi a mão na tentativa de apertar a mão dele.
Ele deu um passo para trás: “Parece que acordei de um sonho. Esse tal de amor na verdade é uma doença grave. E estou me curando dela”.
Isso é ótimo”, respondi, “na verdade, Leoazinha não foi feita para você, assim que você se animar, ainda será capaz de fazer coisas incríveis e então vai poder escolher uma mulher ainda mais notável.”
Não presto mais para nada”, disse ele, “vim me desculpar com você. Não notou umas cinzas de papel queimado no túmulo de Wang Renmei? Fui eu que deixei. Por causa da minha deduragem, Yuan Bochecha foi parar na cadeia e Wang Renmei e seu filho estão mortos, sou um assassino.”
Mas isso de modo algum é culpa sua!”, eu disse.
Também tentei me consolar com justificativas nobres como ‘denunciar uma gravidez ilegal é dever do cidadão’ ou ‘é lícito punir a própria família em nome da pátria’, mas nem essas justificativas conseguiram me tranquilizar, não sou assim tão conscientizado, tudo que fiz foi por interesse próprio, foi para conquistar o amor de Leoazinha. Por causa disso, comecei a sofrer de insônia, é só fechar os olhos que vejo Wang Renmei estendendo as mãos ensanguentadas para me arrancar o coração… Acho que estou com os dias contados…”
Wang Fígado, você está pensando demais, não fez nada de errado, não seja supersticioso, os mortos viraram cinza e fumaça e, mesmo que existisse alma, Renmei não voltaria para persegui-lo. Ela era uma pessoa boa e simples.”
Ela era uma boa pessoa, sem dúvida”, disse Wang Fígado, “e é justamente por isso que a consciência me pesa ainda mais. Corre Corre, você não precisa ter pena de mim, e também não precisa me perdoar. Eu hoje vim aqui porque queria te pedir uma coisa…”
Pode falar, meu irmão.”
Por favor, fale para Leoazinha dizer à sua tia que, naquele dia, depois de fugir pelo poço, Wang Vesícula veio direto a minha casa. Afinal de contas ela é minha irmã. Pequenina, carregando aquela barriga enorme, ela me pediu para salvar a vida dela e da criança que esperava. Posso ter um coração de pedra, mas até eu me comovi. Escondi minha irmã num cesto daqueles de levar esterco, cobri com palha e ainda coloquei por cima um saco de estopa. Amarrei o cesto na garupa da bicicleta e fui pedalando. Na saída da aldeia, encontrei Qin He pronto para me interrogar. Ele é o informante da sua tia — ela nasceu mesmo na época errada e entrou na profissão errada, devia estar comandando um exército contra os inimigos! A última pessoa com quem eu queria topar era Qin He, porque ele é o cão de guarda da sua tia, capaz de entregar qualquer um por causa dela, do mesmo jeito que sou capaz de entregar qualquer um por Leoazinha. Ele bloqueou o meu caminho. Eu já tinha cruzado várias vezes com ele na porta do hospital, mas nunca trocamos uma palavra. Eu sabia que, no fundo, ele me considerava um amigo, somos companheiros no mesmo infortúnio. Quando ele foi atacado por Gao Men e Lu Florzinha na frente do restaurante da empresa de abastecimento, fui eu que o ajudei. ‘Gao, Lu, Qin, Wang’, Qin de Qin He, Wang de Wang Fígado, os quatro bobos da aldeia estavam se enfrentando na rua, juntou uma multidão para assistir, parecia que éramos macacos de circo. O que você não sabe, meu irmão, é que quando alguém que não é bobo passa a ser chamado de bobo, na verdade ganha uma liberdade enorme! Pulei da bicicleta e encarei Qin He.
“‘Você deve estar indo vender porco na feira.’
“‘Isso mesmo, vou vender porco.’
“‘Para falar a verdade, eu não vi nada.’
E assim ele me deixou passar. Os bobos se entendem.
Fale para Leoazinha que eu levei minha irmã até Jiaozhou. Lá eu a coloquei num ônibus para Yantai, em Yantai ela ia comprar uma passagem de barco para Dalian e, de Dalian, seguiria de trem até Harbin. Você sabe que a mãe de Chen Nariz é de Harbin, ainda tem parentes lá. Wang Vesícula estava levando dinheiro suficiente, vocês sabem como ela é inteligente, e sabem como Chen Nariz é esperto, os dois já estavam com tudo pronto fazia tempo. Já se passaram treze dias, Wang Vesícula já chegou aonde precisava chegar. Sua tia pode muito, mas não pode tudo. A mão, por maior que seja, não encobre todo o céu. Em nossa comuna ela faz o que quer, mas lá fora não dá. Wang Vesícula já estava de sete meses. Quando sua tia a encontrar, o bebê já terá nascido. Por isso, fale para sua tia deixar esse assunto para lá.”
Já que é assim, por que ainda precisa contar para elas?”, perguntei.
É a única forma de me redimir”, disse Wang Fígado, “e é a única coisa que eu te peço.”
Está bem”, respondi.

Mo Yan, in As rãs

sábado, 16 de março de 2024

Marisa Monte | Maria de Verdade

Água em água

pedirem um milagre
nem pisco
transformo água em água
e risco em risco
Esta vida de eremita
é, às vezes, bem vazia.
Às vezes, tem visita.
Às vezes, apenas esfria.

Paulo Leminski, in Toda Poesia

Eu, euzinho, euzão

 

As trintas linhas

Um dia Álvaro Moreyra, já avô, contou-me que seu pai ainda lhe dizia: “Mas, Alvinho, por que tu não escreves coisas de mais fôlego?” E ele, espalmando as mãos num gesto de desculpa: “Mas eu não tenho fôlego, Papai...” Depois desta história, eu não precisava dizer mais nada. Contudo, não me sai da lembrança um professor dos meus tempos de ginásio que, ao darnos o tema para a Redação de Português, dizia: “Não adianta escreverem muito, meninos, porque só leio a primeira página; o resto, eu rasgo.” E assim nos dava, ao mesmo tempo, a primeira e a melhor lição de estilo, obrigando-nos a reter as rédeas de Pégaso e a dizer tudo (que aliás não podia ser muito) nas trinta linhas do papel almaço, contando título e assinatura. A ele, pois, ao saudoso major Leonardo Ribeiro, a minha gratidão e a dos meus leitores.

Mário Quintana, in Caderno H

Cartas na Rua | 19 e 20


19

Eu entrava às 18h18, e Dave Janko não entrava antes das 22h36, de modo que poderia ter sido pior. Tendo direito, às 22h06, a um intervalo de trinta minutos, eu geralmente voltava na hora de sua entrada. Ao chegar, ia logo procurando um banco perto do meu. Janko, além de pagar de gênio, também fazia as vezes de grande amante. Segundo ele, era acossado em corredores por mulheres jovens e bonitas, seguido nas ruas por dúzias delas. Não davam um descanso ao pobre coitado. Mas nunca o vi falar com nenhuma mulher no serviço, nem elas falavam com ele.
Vinha com coisas do tipo:
EI, HANK! CARA, HOJE ME PAGARAM UM BOQUETE DAQUELES!
Ele não falava, gritava. Gritava a noite inteira.
POR DEUS, ELA ME DEIXOU SECO! E ERA JOVEM TAMBÉM! MAS FAZIA TUDO COMO SE FOSSE PROFISSIONAL!
Eu acendia um cigarro.
Depois tinha de ouvir a história completa de como ele a conhecera...
TIVE DE SAIR PARA COMPRAR PÃO, ENTENDE?
A partir de então — até o último dos detalhes — o que ela dizia, o que ele dizia, o que eles faziam etc.
Naquela época aprovaram uma lei obrigando os Correios a pagar horas extras aos substitutos. Então os Correios transferiram as horas extras para os efetivos.
Oito ou dez minutos antes do horário normal de minha saída, por volta das 2h48, o alto-falante interno dizia:
Sua atenção, por favor! Todos os funcionários regulares que chegaram às 18h18 devem cumprir uma hora extra!
Janko dava uma sorriso, inclinava-se para mim e continuava a me verter um pouco mais de seu veneno.
Então, oito minutos antes da minha nona hora terminar, o alto-falante anunciava:
Sua atenção, por favor! Todos os funcionários regulares que chegaram às 18h18 devem cumprir duas horas extras.
Então, oito minutos antes da décima hora:
Sua atenção, por favor! Todos os funcionários regulares que chegaram às 18h18 devem cumprir três horas extras.
Nesse meio-tempo, Janko nunca parava.
EU ESTAVA SENTADO NESSA LOJA DE CONVENIÊNCIAS, ENTENDE? E ESSAS DUAS BELEZURAS APARECERAM. ELAS VIERAM SENTAR COMIGO, CADA UMA DE UM LADO...
O cara estava acabando comigo e eu não conseguia me safar. Lembrei-me de todos os outros empregos em que já trabalhara. Eu sempre tinha atraído os loucos. Eles gostavam de mim.
Então Janko empurrou seu romance para cima de mim. Ele não sabia datilografar e tinha recorrido ao trabalho de uma profissional. Os originais estavam numa luxuosa pasta preta de couro. O título era muito romântico.
QUERO SUA OPINIÃO — ele disse.
Beleza — eu respondi.
Beleza — eu respondi.

20

Levei-o para casa, abri a cerveja, entrei na cama e comecei.
Começava bem. Era sobre como Janko tinha vivido em quartos apertados e passando fome enquanto tentava encontrar trabalho. Ele tinha problemas com as agências de emprego. E tinha um cara que ele encontrava em um bar — parecia ser um tipo bem educado —, mas seu amigo vivia pegando dinheiro emprestado e nunca se lembrava de pagá-lo.
Era uma escrita honesta.
Talvez eu tenha julgado o cara mal, pensei.
Estava torcendo por ele enquanto lia. Então o romance se desmanchou. Por alguma razão, no momento em que começara a escrever sobre os Correios, a coisa toda deixou de parecer verdadeira.
O romance ficava cada vez pior. Terminava com ele em uma ópera. Era a hora do intervalo. Tinha se levantado do lugar para se livrar da multidão vulgar e estúpida. Bem, eu estava com ele até ali. Então, ao contornar uma coluna, aconteceu. Aconteceu muito rapidamente. Ele topou com essa coisa culta, elegante e linda. Quase a derrubou!
O diálogo seguia assim:
Ah, sinto muito!
Não foi nada...
Não tive a intenção... você sabe... me desculpe!
Não, fique tranquilo, não foi nada!
É que não vi você... digo, não tive a intenção de...
Está tudo bem. Está tudo bem...
O diálogo sobre o encontrão continuava por uma página e meia.
O pobre rapaz estava mesmo louco.
Acontece que essa gata, embora estivesse vagando sozinha entre as colunas, bem, era casada com um doutor tal, mas o doutor não entendia de ópera, ou melhor, nem se importava com coisas tão ordinárias como o Bolero de Ravel. Ou O chapéu de três pontas de De Falla. Eu estava com o doutor nessa.
Do encontrão dessas duas almas verdadeiramente sensíveis, alguma coisa começou a se desenvolver. Encontravam-se em concertos e davam uma rapidinha depois. (Isso era insinuado e não dito, pois ambos eram muito delicados para simplesmente trepar.)
Bom, assim terminava. A pobre e linda criatura amava o marido e amava o herói (Janko). Não sabia o que fazer, de modo que, é claro, decidiu se matar. Deixou tanto o doutor quanto Janko sozinhos, cada qual em seu banheiro.
Disse ao garoto:
Começa bem. Mas você vai ter de cortar aquele diálogo do encontrão em volta da coluna. É da pior qualidade...
NÃO MESMO — ele disse. — NÃO MEXO EM NADA!

Os meses passavam, e o romance era sempre rejeitado.
JESUS DO CÉU! — ele disse —, NÃO POSSO IR ATÉ NOVA YORK APERTAR AS MÃOS DOS EDITORES, FAZER MÉDIA!
Olhe, garoto, por que você não larga esse emprego? Vá para um quartinho e escreva. Trabalhe no seu material.
UM CARA COMO VOCÊ PODE FAZER ISSO — ele disse —, PORQUE VOCÊ PARECE UM BEBUM. OS CARAS TE CONTRATAM PORQUE PERCEBEM QUE VOCÊ NÃO CONSEGUIRÁ OUTRO EMPREGO E ENTÃO FICARÁ NO QUE TE OFERECEREM. ELES NÃO ME CONTRATAM PORQUE OLHAM PARA MIM E VEEM COMO SOU INTELIGENTE, E ELES PENSAM, BEM, UM HOMEM INTELIGENTE COMO ELE NÃO FICARÁ CONOSCO, ENTÃO NÃO VALE A PENA CONTRATÁ-LO.
Continuo dizendo, vá para um quartinho e escreva.
MAS EU PRECISO DE SEGURANÇA!
Ainda bem que certas pessoas não pensavam assim. Ainda bem que Van Gogh não pensava assim.
O IRMÃO DE VAN GOGH COMPRAVA AS TINTAS PARA ELE! — o garoto me disse.

Charles Bukowski, in Cartas na Rua